O Asterix lusitano e seu final nada engraçado

Jairo Attademo

Lidar com fatos ocorridos há anos valentes tem a desvantagem de nem sempre haver precisão sobre datas e locais, ainda mais quando se trata dos heróis que pertencem ao pessoal que foi derrotado.

Acho que dei spoiler, mas paciência.

As terras e o povo lusitano possuem heróis, mas nenhum deles supera o que trago hoje.

Como cabe a todos os tipos que viram heróis, esse também era intrépido, estratégico, fortão, leal, bravo que nem onça (ou que nem lobo, porque onças não as há aqui) e bonitão.

ESCULTURA DE VIRIATO, MUSEU ZAMORA, ESPANHA

Bonitão, de verdade, não podemos afirmar, já que as fontes são estátuas e pinturas feitas por artistas a soldo que, por amor à cabeça, formoseavam seus nobres modelos para que a posteridade não se assustasse, já que, por fontes mais críveis, alguns rostos e torsos nada tinham de formosos.

Viriato nasceu na antiga Lusitânia, oeste da Península Ibérica, talvez no ano 139 antes de Cristo e, talvez de novo, em Viseu ou em terras hoje espanholas ou no litoral alentejano ou mesmo na Serra da Estrela, nas altitudes do hoje Portugal, lugar que neva a ponto de interditar estradas e atrapalhar os que querem lá esquiar.

Até no seu nome o rapaz dizia a que veio. Há quem afirme que vem do latim viri, homem de honra, herói e tudo de mais fabuloso que se pode dizer de uma pessoa. Até viril.

Sua vida começou calma.

Embora pastorear ovelhas não fosse fácil, devia ser um tormento de calmaria para um menino com o sangue a ferver.  Há quem diga que Viriato tinha origem nobre, mas isso só pode ser coisa de escribas e da sua imensa dificuldade em aceitar que figuras notórias podem também vir da plebe.

Depois de pastor, Viriato encontrou mais agitação na vida de caçador.  Não sendo suficiente, virou soldado nas hostes lusitanas.

LAGO VIRIATO, SERRA DA ESTRELA, PORTUGAL

E foi aí que a coisa ficou boa.

Estamos falando dos tempos em que Roma perturbava o sossego de todo mundo e também dos lusitanos. Isso deve ter começado uns 185 anos antes de Jesus nascer. Quando digo perturbando, entendam por esculachando, invadindo, matando, pilhando, coisas que os romanos e muitos povos antigos faziam. E os nem tão antigos.

Só que os lusitanos davam trabalho. Até um tratado de paz conseguiram obter, mas como os dois lados amavam um quebra-quebra, quebraram o tratado.

Certa vez, os lusitanos tentaram a paz de novo e receberam, dos romanos, promessas de novas terras.

Depois de dividi-los em grupos para fazer a tal reforma agrária (coisa difícil desde antes de Cristo), o general romano Sérgio Galba mandou matar tantos lusitanos quantos fosse possível e prender o resto na Gália. Algumas centenas escaparam da escravidão e adivinhem quem estava no meio? Ele mesmo, Viriato.

QUADRO A MORTE DE VIRIATO, DE JOSE MADRAZO, MUSEU DO PRADO, MADRID

O agora crescido guerreiro ficou muito, mas muito revoltado ao ver seus conterrâneos morrendo às pencas e humilhados aos cachos. Devido às suas habilidades como lutador, sua lealdade e seu bom caráter, logo foi eleito defensor dos lusitanos. Sim, o homem foi eleito, não tem nada de hereditariedade nessa história não.

Daí por diante passou a defender as terras de sua gente e colecionar vitórias acachapantes sobre os romanos, tendo matado pessoalmente alguns bem famosos.

Exímio estratega, liderava com inteligência e pulso firme, sempre justo e cumpridor das alianças que fazia.

Era audacioso a ponto de tomar cidades romanas e cobrar impostos.

Diante de tanta habilidade e liderança, como conseguiriam os romanos vencê-lo?

Aí é que a história fica triste, já adianto. Não houve honra nenhuma na vitória do chamado povo civilizado contra os “bárbaros” lusitanos. Vamos aos fatos:

Depois de abastecer com milhares de cadáveres os cemitérios romanos, Viriato venceu um tal cônsul Fábio Máximo Serviliano e matou mais de três mil de seus soldados.

O cônsul derrotado prometeu que Roma daria autonomia aos lusitanos se Viriato deixasse pelo menos a sua cabeça presa ao pescoço. Assim, o tal safou-se.

Chegando em Roma, o envergonhado cônsul contou tudo para os senadores, que acharam a história humilhante. Repetindo o que acontecera anos antes, Roma não honrou sua palavra e declarou guerra ao povo de Viriato, enviando o general Quinto Servílio Cepião e sua tropa para resolver a pendenga.

DIVERSAS HOMENAGENS A VIRIATO

Pelo jeito, podiam mandar até o Sexto, Sétimo e o Oitavo Cepião. Como era a regra, o tal Quinto perdeu.

Na falta de mais números ordinais para mandar, enviou os ordinários mesmo.

Depois de vencer Cepião, Viriato exigiu que Roma aceitasse a paz e mandou à grande cidade três homens de sua confiança, Audax, Ditalco e Minuros, para assinarem o tratado.

Esse foi o momento em que os ordinários apelaram à mediocridade para vencer o extraordinário. Subornados pelos romanos, os três mensageiros não assinaram nada, mas assassinaram à sorrelfa o seu líder, enquanto este se encontrava dormindo em sua tenda.

Depois que Viriato morreu, Táutalo o sucedeu, mas nem de longe tinha a mesma competência. A desgraça acabou acontecendo: os romanos dominaram também a Lusitânia.

Vejam como é a vida: anos depois, um romano chamado Sertório virou líder dos lusitanos. Vejam como é a vida, de novo:  Sertório também foi assassinado por homens de sua confiança.

Dá uma vontade danada de dizer “aqui se faz aqui se paga”, mas a expressão não é adequada a um cético como eu, que conheço é gente que não paga nada nem aqui nem em lugar nenhum.

Não sei, mas ninguém me tira da cabeça que as histórias em quadrinhos (aqui chamadas de bandas desenhadas) das aventuras de Asterix, o Gaulês, foram e são baseadas na resistência dos lusitanos sob o comando de Viriato. Nas histórias de Uderzo e Goscinny, Asterix e Obelix nunca perdem e nunca vão perder, graças à arte do humor.

É, porque de história triste já bastou essa do Viriato.

Mas alegremo-nos, Viriato vive.

Há um teatro com seu nome em Viseu, uma localidade em Portugal chamada Cabanas de Viriato, um Lago Viriato na Serra da Estrela, o prêmio “Viriato de Ouro” da Câmara Municipal de Viseu, o filme português Viriato (2019), diversos livros sobre suas façanhas, o troféu “Viriato de Oro” do Festival Internacional de Cine arqueológico de Castilla y León e muitas outras homenagens.

 

EPÍLOGO

Em 2015, fui com a esposa assistir a peça “O Casamento de Viriato”, espetáculo ao ar livre, encenado pelo Grupo popular “Fatias de Cá”, da cidade de Tomar. O cenário não podia ser mais bonito: o Castelo de Almourol tendo ao fundo o rio Tejo num cais fluvial do município de Vila Nova da Barquinha.

Sentamo-nos nas arquibancadas do cais, de frente para o Castelo, lua cheia.

Tochas iluminavam o palco de terra e luzes nos mostravam o esplendor da velha construção. Os atores estavam ali, ensaiando, alguns caracterizados. Os cavalos que seriam usados para a encenação estavam amarrados bem perto.

Os trabalhos começaram na hora e versavam, como disse, sobre o casamento de Viriato. No final, não duvidemos, ele morre. É chato, mas morre.

No desenrolar das cenas e atos, o sogro, a fim de costurar alguma paz, convida os romanos para o banquete, mas estes ficam acabrunhados num canto e debaixo do olho atento do noivo. No outro lado estavam os recém-casados, os padrinhos, os amigos e… nós, o público. Sim, fomos todos convidados para o ágape. E estava tudo muito bom.

Depois de tudo encerrado, barriga cheia, Viriato morto, noiva viúva, sogro com cara de tacho, chegou a hora do elenco agradecer ao público, como sempre acontece.

Quando os atores que representaram os romanos desfilaram, tomaram uma vaia de fazer tremer o Castelo e apagar as tochas. Sério, eu vi e vaiei junto.  Aplausos ali eram só para os heróis. Foi assim que comecei a aprender como funciona o espírito lusitano que vive nos portugueses.

 

NOTA DA REDAÇÃO: Jairo Attademo mora em Portugal.  Criado em Barbacena, trabalhou nas rádios e jornais locais. Depois de aposentar-se na indústria farmacêutica, tem colaborado com a FM Sucesso, TV Diversa e com o Barbacena Online.

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