Mau cheiro na quitinete do Santana

Quando resolvi estudar Comunicação Social – Jornalismo na cidade de Ubá, a 90 km de Barbacena, ouvi muitas provocações de amigos: “Santana, você perdeu o juízo? Lá é tão quente que vai cozinhar seus miolos!”, “Tinha que ser de Barbacena – Cidade dos loucos para estudar em Ubá”. “Ubá está situada sobre um vulcão, Santana, você não vai aguentar o tranco!”. Não me intimidei e fui residir em Ubá por quatro anos. Sobre o calor é tudo verdade. A cidade é muito quente parece mesmo estar situada sobre um vulcão. O clima oscila entre 30, 36 e até 40 graus. Uma loucura. Fora esse entrave natural, a cidade é fantástica e merece o título de: “Cidade carinho”.

Povo simpático distribuindo sorrisos, atenções e gentilezas. Ubá está situada na Zona da Mata mineira onde abriga fabricantes de móveis de alta qualidade. È o primeiro pólo moveleiro do Estado de Minas Gerais o terceiro do país. Ubá esta bem estrategicamente, a 270 km de Belo Horizonte e 280 km do Rio de Janeiro, além do fácil acesso por meio do Aeroporto Regional da Zona da Mata e das rodovias estaduais e federais à sua volta. 

Abri este parágrafo para citar algumas das inúmeras celebridades nascidas em Ubá. Ary Barroso, dispensa comentários; Nelson Ned, cantor; Mauro Mendonça, ator; Celma e Célia, cantoras; Francisco Carioca, comunicador; Marum Alexander, maestro; Levindo Ozanan Coelho, Governador de Minas Gerais de 78 a 79; Ibrahim Jacob, Deputado Estadual; Nayla Micherif, Miss Brasil 1997; Raul Soares, jurista; Antônio Olintho, escritor, membro da Academia Brasileira de Letras; Celina Avanci, socialite, humanitária e solidária; Miúcha Trajano, jornalista e cantora; Isabel Solero Lemos, intelectual.  Vocês honram Ubá e dão um toque refinado à minha crônica. 

A “Cidade Carinho” me proporcionou essa história. Era a última semana de junho de 2002. Fim das aulas do primeiro semestre da Faculdade de Jornalismo Governador Ozanan Coelho. Eu morava numa quitinete à Rua Antenor Machado, apartamento 303. Excelente frequência e boas notas me deram o direito de retornar à minha cidade natal, Barbacena, mais cedo. Despedi-me dos colegas e professores desejando a eles boas férias e até agosto, se Deus quiser. A grande maioria pediu-me cuidado redobrado na estrada, que além das curvas e buracos, estava escorregadia pelas constantes pancadas de chuva que caíam na região. Na noite anterior eu enchi o tanque do carro, o revisei para evitar transtornos. Pela manhã me aprontei para deixar Ubá por trinta e poucos dias. Dei uma arrumada na quitinete e foi aí que cometi o primeiro grande erro: esqueci de me despedir das vizinhas do 3º andar e dizer-lhes que estaria fora por motivo de férias. Desliguei o registro elétrico geral e deixei a porta da geladeira semi-aberta. 

Eram cinco horas da manhã e eu já estava na estrada. Viagem tranquila, estrada pouco movimentada, e mais um semestre vencido. Mal sabia eu a grande confusão aprontada por inexperiência ou ignorância. Passados alguns dias da minha vinda para Barbacena, fiquei sabendo que um mau cheiro tomou conta do prédio. Por ter um bambuzal nos fundos, pensara-se que alguém jogara ali algum animal morto que pudesse estar em decomposição. A síndica foi chamada e começaram a perceber que a fedentina estava no apartamento de nº 303. Ela e uma vizinha começaram a suspeitar que o Santana estivesse morto dentro da sua quitinete, morando sozinho, coitado! As suspeitas iam aumentando na proporção do mau cheiro. Cadê o Santana que não aparece? Ele sumiu sem deixar avisos, diziam todas.

Ligaram para a Faculdade que negou fornecer meu telefone em Barbacena, alegando ética. Contataram com alguns alunos que confirmaram ausências do Santana nas aulas há vários dias. As suspeitas iam se confirmando. Pensaram em arrombar a porta, chamar a polícia, Corpo de Bombeiros. Uma vizinha teve uma idéia genial, iriam à rua, localizariam um menino franzino para entrar na quitinete pelo vão da janela. Um policial morador do 2º andar foi à Praça Guido Marlière, frente à minha morada e localizaram um. Começou então a busca do corpo do Santana. Ergueram o menino que a toda hora era questionado se via alguma coisa. Ele quebrou o silêncio e disse que pela janela enxergava o quarto, uma cama arrumada, um guarda roupa, e que o defunto poderia estar na cozinha ou na sala, pois o mau cheiro vinha lá de dentro. O menino já se encontrava no interior da casa. Foi à sala e disse que via um sofá, dois quadros na parede, aparelho de som, televisão e um armário cheio de livros. Apreensiva a síndica perguntava: “encontrou o Santana?”. Para visitar a casa toda, só faltavam a cozinha, o banheiro e um pequeno cômodo. Ele olhou os dois cômodos e gritou: “aqui não tem nenhum defunto!”.

  • Se não tem defunto que mau cheiro é esse que está saindo da casa dele? 
  • Xiiiiii!!!! O fedô está vindo de dentro da geladeira. Espera! O chão está cheio de sangue!
  • Ai meu Deus! Será que fatiaram o Santana e colocaram as partes na geladeira? Pobre Santana, tão educado e prestativo.
  • Não é sangue não! É coca cola com suco de uva que explodiram dentro da geladeira. Dentro dela tem uma “porrada” de coisas estragadas, yogurte estourado e mofado, pizza verde e mofada, queijo da cor da bandeira do Brasil verde/amarelo, maçãs pretas, melancia desmanchando, feijão verde, arroz azulado, e a carne do congelador podre. Puta que pariu, o quibe da tigela está cheio de larvas, Credo! A alface está amarela, laranjas podres e a geladeira toda mofada por dentro. 
  • Eu vou lhe dar pela janela um saco grande e você pega toda essa bagunça e coloca dentro dele. Depois me passe pelos fundos para jogar fora e ver se termina essa fedentina. Dizia a síndica.

Depois de uma limpeza geral dos ingredientes deteriorados, o bom cheiro voltou a reinar no apartamento 303 da Rua Antenor Machado em Ubá/MG. Quando voltei para o segundo semestre levei broncas e muitos conselhos dos moradores. Até hoje eu rio da história. A coisa foi tão séria que a partir desse acontecimento, toda sexta-feira uma vizinha me perguntava se eu iria viajar e as demais ao encontrarem comigo na escada ou corredor, faziam sempre a mesma pergunta: 

– Vai viajar, Senhor Santana? Se for, não se esqueça de me avisar ou então deixe a chave com alguém do prédio. Lição aprendida. Gastei muitas horas para limpar a geladeira e dar explicações a muita gente que ficou sabendo da história. O policial me disse: “Santana, você é doido mesmo!”.

Numa tarde passando pela Praça Guido Marlière um menino franzino veio a mim e disse: “O senhor é o defunto daquele prédio?”. Sorrimos e ele educadamente apertou minha mão e disse: “Juízo hein!” e cada um seguiu seu rumo. 

Francisco de Santana

Nós usamos cookies e outras tecnologias semelhantes para melhorar a sua experiência em nossos serviços, personalizar publicidade e recomendar conteúdo de seu interesse. Ao utilizar nossos serviços, você concorda com tal monitoramento. Aceitar Saiba Mais