Pauta em prosa, verso em trova (Volume 88)

Por JGHeleno*

 

 

 

 

CANAS-DO-REINO

 

Duas horas depois de meia-noite.

Do amanhã, nada; vivia um puxadinho do ontem. A ponta da taquara esbarra na lamparina…

Problema reacendê-la na escuridão.

Barulho não fez. O pai roncava no convencional. A mãe emitia um K, profundamente gutural, e lhe trazia medo. Os irmãozinhos choramingavam, um aqui outro ali. Bicho papão já não lhe dizia nada. 1950? Por aí.

– Vou entregar essa gaiola. Jurei pra mim mesmo. Ele resmunga.

Tem que ser para domingo. Sem o quê, não terei balas, bolas, talvez um pião, Caixa de fósforo para apostar palitos com outros meninos…

Muita gente concorre para que um garoto insone teça então  sua gaiola.

Recorda-se – é claro, nas palavras dele – das lides do dia, enquanto tenta reverter a escuridão, mas  sem subverter o reino do silêncio.

Foi o jeito que encontrei para ter o meu dinheiro. Continua pensando. Semanalmente entrego uma peça, para ter onze cruzeiros. Madrugadas também contam.

Ivo era  seu vizinho. Senhor de poucas palavras e que economizava sorriso… Mas o menino achava que valia a pena ser como ele quando crescesse. Era pelas coisas que via todo dia, o estar-junto com os filhos dele… Não era – ele podia jurar – só  pelas canas-do-reino. Havia um certo xodó com elas, sem dúvida. O menino sabia disso. Não as havia por perto, em outro lugar. Sem elas, não haveria engradamento das gaiolas.

– Vai lá, meu filho! Pegue o que quiser. Não… Não precisa entremear maduras e verdes, grossas e finas… do meio e das bordas. Apanhe como quiser.

Era deferência pura, muito especial com o menino, e ele entendia isso. O tratamento não era esse com outros compradores, muitos vindos de longe.

– Não, não pague nada! Encerrava assim a negociação.

O menino voltava para sua casa… Um negócio quente dentro do  peito lhe dava um contentamento vivo: a certeza de que ele também não era um menino qualquer, pelo menos para aquele Senhor Ivo.

 

O menino que a gente foi está sempre dentro da gente. O menino é um processo, um aprendizado. Agora, na vida adulta, é hora de acariciá-lo, reconhecer que ele se saiu bem. Pensando num rio, na infância aprende-se a nadar. A meta é chegar ao meio, mesmo sabendo que o meio é fundo com risco de afundar. No tempo idoso, a margem é de raseira. Os dois se encontram e podem dialogar sobre a travessia: diálogo de emoção e afeto. Hora de revisar, achar o sentido de muita coisa que se deu, sem o devido tempo de senti-lo. Olhar as pessoas que lhe deram a mão, lançaram uma boia nos momentos de perigo, amá-las.

 

O sentido na arte da escrita ou em outra qualquer está ligado, não ao saber, ao conhecer, ao relembrar em si, mas ao sentir, portanto é uma sensação de prazer, por isso o sentido da arte é sempre presente, mesmo quando ensejado por uma lembrança passada.

 

O sentido de uma lembrança é o pertencimento dessa lembrança ao estágio presente do universo pessoal como ele se encontra. Recordar é buscar e ressignificar, é atualizar prazerosamente o que está dentro de nós mas parece que está distante  em razão do esquecimento.

 

Tudo termina em trova:

 

 

Do passado adormecido

muitas vezes não se sente

o seu completo sentido

se não se o torna presente (JGHeleno)

 

*ABL, AJL, LEIAJF, UBT

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