Por JGHeleno*
CANAS-DO-REINO
Duas horas depois de meia-noite.
Do amanhã, nada; vivia um puxadinho do ontem. A ponta da taquara esbarra na lamparina…
Problema reacendê-la na escuridão.
Barulho não fez. O pai roncava no convencional. A mãe emitia um K, profundamente gutural, e lhe trazia medo. Os irmãozinhos choramingavam, um aqui outro ali. Bicho papão já não lhe dizia nada. 1950? Por aí.
– Vou entregar essa gaiola. Jurei pra mim mesmo. Ele resmunga.
Tem que ser para domingo. Sem o quê, não terei balas, bolas, talvez um pião, Caixa de fósforo para apostar palitos com outros meninos…
Muita gente concorre para que um garoto insone teça então sua gaiola.
Recorda-se – é claro, nas palavras dele – das lides do dia, enquanto tenta reverter a escuridão, mas sem subverter o reino do silêncio.
Foi o jeito que encontrei para ter o meu dinheiro. Continua pensando. Semanalmente entrego uma peça, para ter onze cruzeiros. Madrugadas também contam.
Ivo era seu vizinho. Senhor de poucas palavras e que economizava sorriso… Mas o menino achava que valia a pena ser como ele quando crescesse. Era pelas coisas que via todo dia, o estar-junto com os filhos dele… Não era – ele podia jurar – só pelas canas-do-reino. Havia um certo xodó com elas, sem dúvida. O menino sabia disso. Não as havia por perto, em outro lugar. Sem elas, não haveria engradamento das gaiolas.
– Vai lá, meu filho! Pegue o que quiser. Não… Não precisa entremear maduras e verdes, grossas e finas… do meio e das bordas. Apanhe como quiser.
Era deferência pura, muito especial com o menino, e ele entendia isso. O tratamento não era esse com outros compradores, muitos vindos de longe.
– Não, não pague nada! Encerrava assim a negociação.
O menino voltava para sua casa… Um negócio quente dentro do peito lhe dava um contentamento vivo: a certeza de que ele também não era um menino qualquer, pelo menos para aquele Senhor Ivo.
O menino que a gente foi está sempre dentro da gente. O menino é um processo, um aprendizado. Agora, na vida adulta, é hora de acariciá-lo, reconhecer que ele se saiu bem. Pensando num rio, na infância aprende-se a nadar. A meta é chegar ao meio, mesmo sabendo que o meio é fundo com risco de afundar. No tempo idoso, a margem é de raseira. Os dois se encontram e podem dialogar sobre a travessia: diálogo de emoção e afeto. Hora de revisar, achar o sentido de muita coisa que se deu, sem o devido tempo de senti-lo. Olhar as pessoas que lhe deram a mão, lançaram uma boia nos momentos de perigo, amá-las.
O sentido na arte da escrita ou em outra qualquer está ligado, não ao saber, ao conhecer, ao relembrar em si, mas ao sentir, portanto é uma sensação de prazer, por isso o sentido da arte é sempre presente, mesmo quando ensejado por uma lembrança passada.
O sentido de uma lembrança é o pertencimento dessa lembrança ao estágio presente do universo pessoal como ele se encontra. Recordar é buscar e ressignificar, é atualizar prazerosamente o que está dentro de nós mas parece que está distante em razão do esquecimento.
Tudo termina em trova:
Do passado adormecido
muitas vezes não se sente
o seu completo sentido
se não se o torna presente (JGHeleno)
*ABL, AJL, LEIAJF, UBT
⚠️ A reprodução de conteúdo produzido pelo Portal Barbacena Online é vedada a outros veículos de comunicação sem a expressa autorização.
Comunique ao Portal Barbacena Online equívocos de redação, de informação ou técnicos encontrados nesta página clicando no botão abaixo: