Estado laico não é Estado sem religião!

Cícero Mouteira

Em um universo binário, a divisão das ideologias em dois extremos não é um fenômeno comum. O próprio Direito é exemplo de duas pontas extremas em muitos assuntos, senão momentos. Passando por estágios de pouca proteção e outras de blindagem excessiva, tenta a Ciência Jurídica correr atrás do anseio humano e atender a demanda social da melhor forma possível.

 

Futebol, política e religião. Três paixões que o brasileiro leva ao limite em suas discussões e essa semana fui demandado pela possibilidade ou não de uma Permissão de Uso de escola pública em favor de movimento de Igreja, tendo em vista que o Estado é laico.

 

A dúvida emanou de uma visão radical do Art. 19 da Carta Magna:

 

É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público.

 

 

Não vivemos em um Estado sem religião. Assim, de forma singular, há duas décadas Martins Bastos esclarece a diferença entre Estado laico e a possibilidade de parcerias e colaborações de interesse público previsto no final do Art. 19 da CRFB 1988:

 

A possibilidade de cooperação de interesse público, prescrita no inciso I do art. 19 da Constituição do Brasil, permite que a Igreja e o Estado sejam parceiros em obras sociais. O que o Estado não pode fazer é legislar em matéria religiosa, subvencionar cultos. A eventual parceria para atender a interesse público não anula a laicidade, e nem se traduz em intromissão de uma instituição sobre a outra. Essa permissão de parceria reforça a ideia de que as igrejas podem atuar na vida pública, oferecendo cooperação de natureza educacional, entre outras colaborações, sem que se comprometa a laicidade do Estado.

 

A referida cooperação é aquela em que a igreja supre atividades que estariam no âmbito do Estado praticar, agindo, pois, como sua “longa manus” (BASTOS, 2000)

 

 

Convergente, o próprio Senado divulga em seu sítio eletrônico oficial um estudo robusto sobre o assunto, definindo o Estado como laico e neutro, porém de forma alguma incompatível com a religião:

 

Portanto, a separação entre Igreja e Estado, característica do Estado laico, não significa incompatibilidade entre um e outro, e nem falta de diálogo entre ambos. A separação exige que o Estado não apóie nenhuma corrente religiosa, mas também não adote uma postura anti-religiosa. Em suma, Estado laico é Estado neutro.

 

A laicidade deve ser compreendida, no seu verdadeiro conceito, como autonomia entre a política e a religião, e também como elemento de neutralidade que permite a manifestação das diversas opiniões, seja de religiosos, agnósticos, ateus, ou de quaisquer outras correntes políticas ou doutrinárias, desde que nenhuma opinião formulada por alguma das correntes de pensamento tenha caráter vinculativo. As igrejas não podem substituir o Estado, mas possuem o indiscutível direito de expressar sua opinião em qualquer que seja o assunto, assim como o têm todas as outras organizações, de que são exemplos as Organizações Não-Governamentais. Esse é o verdadeiro alcance de uma sociedade realmente pluralista.

 

https://www12.senado.leg.br/publicacoes/estudos-legislativos/tipos-de-estudos/outras-publicacoes/volume-i-constituicao-de-1988/principios-e-direitos-fundamentais-estado-laico-e-direitos-fundamentais

 

 

 

E se se eventual polêmica nasce do texto constitucional, a Lei Maior também é suficiente para resguardar a possibilidade de colaboração entre Estado e Igreja:

 

O art. 3º arrola, como um dos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, a promoção do bem de todos, “sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”. (inciso IV). Entre as outras formas de discriminação se insere, naturalmente, todo e qualquer impedimento à livre manifestação do pensamento.

 

O caput do art. 5º consagra o princípio cardeal da ordem democrática, o princípio da igualdade, fundamento maior do Estado de Direito. O inciso IV protege a liberdade de pensamento. De acordo com o inciso VI, “é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias”.

 

Pelo inciso IX, “é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença”.

 

Como proteção aos direitos assegurados, “a lei punirá qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais” (inciso XLI).

 

Finalmente, o § 2º do art. 5º pontifica que “os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte”.

 

(Op. Cit.)

 

 

Evidente que o mesmo tratamento dado a uma organização religiosa se estende a outras parcerias com pessoas jurídicas de direito privado, constituídas sob a forma de entidade sem fins lucrativos, sem favorecimento ou exclusão, com foco no Princípio da Isonomia, conforme arcaicos porém ainda valiosos ensinamentos de Pontes de Miranda:

 

(…) direitos fundamentais valem perante o Estado, e não pelo acidente da regra constitucional. São concepções de proteção, e não de existência de tais direitos. A sua essência, a sua supra-estatalidade é inorganizável pelo Estado. O que é organizável é a proteção jurídica (…). Os direitos supra-estatais não existem conforme os cria ou regula a lei; existem a despeito das leis que os pretendam modificar ou conceituar. Não resultam das leis: precedem-nas; não têm o conteúdo que elas lhes dão, recebem-no do direito das gentes. (…) O conceito de igualdade é a priori, preexiste como dado lógico à feitura das Constituições. (MIRANDA, 1967).

 

 

Por último, outro Miranda, Jorge Miranda, revela a importância do Estado não apenas respeitar, porém colaborar com a fé de seu povo:

 

a liberdade religiosa não consiste apenas em o Estado a ninguém impor qualquer religião ou a ninguém impedir de professar determinada crença. Consiste ainda, por um lado, em o Estado permitir ou propiciar a quem seguir determinada religião o cumprimento dos deveres que dela decorrem (em matéria de culto, de família ou de ensino, por exemplo), em termos razoáveis. (MIRANDA, 2003)

 

 

Enfim, superada a possibilidade de colaboração entre o Estado Secular e organizações religiosas, talvez polêmica maior seria aventar a possibilidade de ensino religioso em escolas públicas. Todavia, sem grandes obstáculos desde que fosse um estudo voltado para a história e importância das religiões, sobretudo pregando o respeito a liberdade de crença!

 

Nota de Redação: CÍCERO B MOUTEIRA é advogado, professor universitário e de cursos preparatórios, Assessor Jurídico da PMMG e defensor de um Estado Laico em colaboração com boas práticas religiosas, sobretudo aquelas que diminuam o preconceito e a intolerância.

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