Sexta-feira da Paixão e da Generosidade

Professora Marina Cerqueira

Na década de 60 do século passado, no Bairro Matozinhos, na histórica cidade de São João Del-Rei vivia Amélia com seus pais: Francisco e Valdemira e seus três irmãos: José, João e Vicente.
Amélia era uma linda e sapeca menina. Observava tudo que acontecia munida de curiosidade.
Na Sexta-feira Santa ou da Paixão de Cristo ela sempre provocava bronca dos pais e de José, seu irmão primogênito. Quando Amélia nasceu, José tinha sete anos de idade, logo exercia liderança sobre a menina travessa. Os outros irmãos eram mais novos. A causa das broncas que a menina são-joanense levava eram devido a Sexta-feira da Paixão ser um dia distinto dos demais dias do mês e do ano, em termo de peculiaridades, que deixavam a menina muito cabreira.
Naquele dia havia no lar da pequena menina muitas proibições:
– A partir do meio dia do dia anterior, Quinta-feira Santa, até o Sábado Santo não se tomava banho nem varria a casa;
– Sexta-feira Santa não podia comer carne, exceto peixe, tinha que alimentar menos do que de costume, era proibido ficar saciado;
– Ninguém podia ligar o rádio, único aparelho de som que possuíam, nem conversar alto;
– O trem de ferro que transportava passageiros e cargas não apitava, os carros não buzinavam, ninguém vestia com cores alegres, exceto os figurados da Procissão do Enterro;
– No período Quaresmal, as pessoas do contexto familiar não dançavam nem celebravam matrimônios;
Amélia ficava matutando, matutando sem entender direito.
Seu avô paterno morava em um arraial pertencente a Barbacena, cidade vizinha. Ele adoeceu de repente e infelizmente faleceu.
Seu pai, senhor muito apegado a vivência familiar, resolveu mudar da cidade de São João del Rei para o Arraial de Ibertioga com toda família.
Em Ibertioga, Quaresma e Semana Santa estavam acontecendo de modo muito similar até chegar a Sexta-feira Santa.
A família que agora vivia em um pequeno sítio, distante 9 km do Arraial estava vivenciando a Quaresma com a mesma piedade: Via Sacra, silêncio, penitência, orações, participação nas Santas Missas e procissões…
Algo diferente chamou atenção da menina peralta.
Sexta-feira Santa ou da Paixão todos foram para o curral, como de costume. As crianças levavam as canecas feitas pelo próprio pai, com latas de massa de tomate e alças de arame retorcido para beberem o leite quentinho e espumante, que deixavam todos de bigode branco, inclusive Amélia, a sapeca. De repente eles viram chegar uma “procissão” de pessoas com vasilhames: latas, panelas, caldeirões e cabaças. Não demorou muito tempo para ver que seu pai enchia as vasilhas com leite quentinho que saía das tetas das vaquinhas! Senhor Chico, assim era conhecido, percebeu o olhar curioso dos filhos e explicou com sabedoria de homem fervoroso:
– Filhinhos, não é “procissão”, essas pessoas vieram do Arraial de Ibertioga, são pobres e não tem vacas. Todo ano, nesse dia da Paixão e Morte de Jesus não se vende leite. Todos os que vendem leite nos outros dias do ano praticam generosidade. Doam todo o leite para as pessoas fazerem doce.
– Elas não jejuam, papai? Interveio a curiosa menina.
– Jejuam sim, filha. Todos levam o leite e fazem doce, a maioria faz arroz doce. Quando termina o dia, lá pelas seis horas da tarde, as famílias oferecem o jejum e a abstinência de carne a Deus pedindo perdão dos pecados e conversão da humanidade inteira. Logo após jantam e comem o doce muito felizes. Nesse momento, as famílias agradecem a generosidade dos que doaram o leite. José acrescentou: – rezam por nós também, né papai?
– Sim. Depois vão todos para a Procissão do Enterro com muita piedade, assim como nós.
Valdemira e José ajudavam senhor Chico tirar o leite e encher as vasilhas. As vacas mansinhas pareciam felizes com a novidade.
Já na Procissão, a sapeca Amélia perguntava baixinho, ora para o pai, ora para a mãe, ora para seu mano José sobre o que não entendia. Era uma sequência de perguntas:
– Por que a Banda só toca músicas tristes? Por que aquela mulher desenrola uma toalha com o rosto de Jesus e canta quase chorando? Por que aquelas mulheres de preto não mostram o rosto? Por que o velho carrega um feixinho de lenha, o menino vai na frente e o anjo atrás? Porque todo mundo chora e reza sem parar atrás do caixão? Os pais e irmão respondiam quase cochichando, pediam que ela ficasse em silêncio, no entanto, ela não continha a curiosidade e logo fazia outra pergunta.
Quando o padre, durante o último sermão, já dentro da Igreja disse que nós matamos Jesus com nosso pecado, ela disse bem alto: Não, nós não matamos não né mamãe? Diante da quebra do silêncio pelos olhares de todos em direção a família, Senhor Chico e D. Valdemira pegaram as mãos da filha, enquanto José fazia o gesto de Psiu!!! Todos foram para casa acabrunhados e Amélia só levou broncas no Sábado de Aleluia, afinal naquele dia só podia praticar generosidade, nada de barulho.
Marina Lúcia de Cerqueira Marinho Oliveira, são-joanense de nascimento e barbacenense há 43 anos, ama ler e escrever. Autora de três livros, vários poemas e textos. É Mestre em Educação, Psicopedagoga e Pedagoga. Atuou em todas as etapas e anos da Educação Básica e Superior. Lecionou na Pós-graduação. É casada com José Augusto, mãe de três filhos e avó. Felicidade envolve amor à vida e histórias de vida, por isso ama a Cultura, principalmente a Literatura!

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