Quem somos os burros?

Jairo Attademo

Já faz um tempo que estamos assistindo a uma coleção infinita de estultices. Dentro e fora do Brasil, diga-se de passagem.

As patuscadas na vida política têm sido tão frequentes e as maneiras de praticá-las são tão inacreditáveis que chegamos a pensar que estamos vivendo numa Terra plana que nem pé-chato.

A Terra não é plana, mas precisamos admitir que tem ficado mais chata. São cenas que seriam divertidas se não fossem trágicas, mas mesmo assim pegamos nossa pipoca para assistir os shows de trapalhadas da vida real.

E por que essa introdução?

Estava eu procurando lendas portuguesas e uma fonte me mandou uma fábula sobre um burro que falava.

É difícil adivinhar em quem eu pensei, especialmente nesses tempos bicudos, onde um monte de gente anda merecendo o apelido, inclusive eu. Ou principalmente.

É que nós temos o hábito de chamar de burros os praticantes de atos pouco inteligentes. Dizemos que fazem asneiras, atitudes falsamente atribuídas aos asnos.

Quando queremos ofender os pouco afeitos aos estudos, os tachamos de jumentos. Quando erramos em algo, fazemos besteira, coisas que seriam, injustamente, feitas por bestas.

Antes de trazer a fábula, apresento-vos Dilfenio Romero, o criador da Associação dos Amigos do Burro, a Burrolândia, que existe há mais de vinte anos em Três Cantos, na província de Madrid, Espanha.

Dilfenio lida com todo tipo de animais de quatro patas, principalmente burros, cavalos, jumentos e asnos. Visitantes humanos podem até reservar um passeio por lá. Dizem que é divertido.

Segundo o benfeitor, chamar de burro um ser humano que faz coisas pouco espertas não passa de um mito (desculpe a palavra).

Seus estudos mostram que o burro é bem mais inteligente que o cavalo. E ele exemplifica: se você tem vários cavalos e coloca um burro no meio deles, em uma semana todos estarão seguindo o burro.

Não pensem bobagem. Ele disse isso literalmente.

Quer mais uma prova da inteligência do burrico? O Sr. Dilfenio tem.

Baltazar, o burro que não fala (Foto: Pixabay)

Antigamente, diz ele, quando ainda não existia a engenharia das estradas, um burro era mandado para o local onde precisavam fazer uma. Ele era seguido por vários dias e o caminho por onde andou sempre era o melhor para construir a rodovia.

E ainda existe, no local, a burroterapia, tratamento que o Sr. Dilfenio se refere como muito útil para as crianças com problemas de ansiedade, depressão, autismo e outros males dos homens. É só ficar com eles e tudo vai se acalmando.

Vamos às lendas envolvendo os burros.

A primeira delas foi enviada por uma fonte que desconfio tê-la inventado, com base num filme cujo personagem principal é um burrinho chamado Balthazar (A Grande Testemunha/Au Hasard Balthazar, De Robert Bresson, França-Suécia, 1966). Ou no Sítio do Picapau Amarelo, de Monteiro Lobato, onde vive um burro falante.

Como é uma narração que nos vai fazer pensar, aí está ela, mesmo podendo ser invenção da minha fonte. Aliás, quais são as lendas que não foram inventadas?

Numa pequena aldeia portuguesa vivia um burro, de nome Baltazar. Não era um burro comum, pois, além de comer capim, carregar coisas e encontrar bons caminhos, ele sabia falar.

Um dia, o burro decidiu dar um passeio pela aldeia e surpreender os habitantes. Deve ter pensado: cansei de falar sozinho e ninguém me entender aqui nesse curral.

Assim, foi até a praça central, onde sempre tem gente conversando, negociando e falando mal da vida dos que acabam de sair da rodinha.

Sentou-se num banco do jardim, o que já chamou a atenção dos moradores. Afinal, sentar não é exatamente uma atribuição de um burro de carga. Pois sentou e ainda abriu um jornal. Abriu e começou a ler! E colocou uns óculos enormes, verdes, de plástico, que achou num lixo numa quarta-feira de cinzas.

Os moradores foram se aproximando daquela cena inusitada, sem acreditar no que viam. Um burro, de patas cruzadas, sentado, lendo um jornal, usando óculos! Não eram bem óculos funcionais, é verdade, mas conferiam ao equino uma certa dignidade intelectual.

Quando já se formava uma rodinha bem concorrida em torno da gentil e orelhuda criatura, o burro começou a falar sobre a guerra na Alemanha, a carestia, a corrupção e outras coisas que estavam nas manchetes.

Por cerca de um minuto, as pessoas nada fizeram além de abrirem a boca, branquearem a cara e pendurarem os braços. Algumas babaram.

Eu disse um minuto, não foi? Exagero. Em trinta segundos, todos saíram numa correria atarantada, uns gritando, outros persignando-se. Uma velha tropeçou no terço e caiu de boca na grama. Um homem subiu numa árvore sem saber como, já que há anos puxava feio de uma perna.

Somente as crianças, sempre elas, ficaram ali. Para elas, tudo é plenamente normal. Meninas e meninos de seis a doze anos se aproximaram e sentaram-se à volta do simpático ser.

A mais atirada delas, sardenta e de cabelo vermelho, perguntou ao digno quadrúpede:

– Olá, senhor, como te chamas?

– Baltazar, respondeu o equino.

Se fossem adultos, iam logo querer saber como era possível um burro falar, mas eram crianças. Então a sardentinha continuou:

– O Sr. Baltazar sabe contar histórias?

– Claro, respondeu o burrinho mais simpático que um dia alguém já viu.

Baltazar contou suas estripulias de quando ainda era filhote, disse que adora maçã e coisas doces, contou piadas de salão, fez trocadilhos e comentários engraçados sobre a vida de todos da aldeia, especialmente os que o maltratavam com pedradas, queixou-se do seu atual dono, que além de lhe bater, só lhe dava capim pra comer. As crianças se divertiam e suas risadas ecoavam pela praça.

Cabana na Floresta

Aos poucos, os medrosos adultos foram voltando. Algumas mães e pais foram tirar os filhos de perto daquela aparente aberração, mas a criançada não quis arredar pé.

– Olha mãe, ele é bonzinho… dizia um menino com seus oito anos, nariz escorrendo.

– Sim, senhora, não precisa ter medo. Eu só falo coisas boas, disse Baltazar, piscando o olhão para as crianças, que deveriam guardar aquelas fofocas para si, numa cumplicidade equino-sapiens que se iniciava.

A simpatia dele era tanta que alguns resolveram ficar por ali, uns trouxeram café e bolachas, outros levaram cestas de maçãs que o burrinho agradecia no mais elevado patamar de gentileza. E assim passou a tarde mais curiosa e agradável que a aldeia já tinha vivido.

As notícias sobre o burro falante espalharam-se rapidamente para as aldeias vizinhas e até mesmo para as cidades grandes. Pessoas vinham de muito longe para conversar com Baltazar. Algumas pediam-lhe conselhos sobre resiliência e relacionamentos, outras o ouviam falar da necessidade de se entender a natureza e seus segredos.

O resultado não podia ser outro. Baltazar acabou, sem querer, fazendo com que a aldeia ficasse popular e prosperasse. Chegavam milhares de turistas o ano todo, hotéis foram inaugurados, restaurantes, pousadas, postos de gasolina. E olha que nem existia televisão e redes sociais naquela época.

Feiticeiro e seus Ogros

O burrinho tinha uma vida muito boa. Não que precisasse de dinheiro ou de casa, mas era tratado com respeito e carinho por todos, que sempre o entupiam de guloseimas e presentes.

Chegou a ganhar um terno sob medida, feito pelo alfaiate Tatão, o mais respeitado da região, uma cartola e uma bengala, para conferir um ar ainda mais nobre ao jovem quadrúpede, que apenas agradecia, como é o costume desses animais.

No entanto, nem todos estavam felizes. Havia nas redondezas um feiticeiro que vivia com seus ogros, uns monstrões horríveis que não podiam com a luz do sol. Moravam todos numa cabana feia, fedorenta e cheia de aranhas, no fundo da floresta.

O bruxo, inconformado com o dom inexplicável de Baltazar, muniu-se de cordas e chicotes, chamou seus ogros e esgueirou-se pelas paredes da aldeia, no escuro, para capturar o gentil personagem que sempre dormia no Hotel da Praça, convidado permanente do proprietário.

Na verdade, o burro dormia do lado de fora do hotel. Não cabia lá dentro, embora gostasse da ideia de ser hóspede, mesmo não podendo entrar.

O feiticeiro queria, de todo jeito, descobrir o segredo de Baltazar. Assim, enquanto o burro dormia (e os burros dormem pesado), ele amarrou suas patas. Lentamente, os ogros arrastaram Baltazar até uma carroça, onde o colocaram e o puxaram até a cabana da floresta.

Baltazar ficou do lado de fora, amarrado num tronco de árvore. O feiticeiro passou dias tentando descobrir qual era o segredo que o fazia falar. E tome bruxedos, encantamentos e poções amargosas que o burro era obrigado a beber.

Nada dava certo, a revelação nunca chegava, nenhuma epifania. O feiticeiro chegou a se sentir ridículo ao tentar falar com os outros animais, pensando que eles poderiam revelar o segredo do amigo. Nada.

Finalmente, frustrado e cansado, o narigudo e horrível feiticeiro desistiu. Libertou Baltazar, que desde o dia em que lá chegou, não pronunciou nenhuma sílaba. Pelo menos o bruxo não era tão mau a ponto de querer matar o pobre.

Quando o burro voltou para a aldeia, encontrou todos aliviados e felizes. Só que uma coisa aconteceu: Baltazar já não conseguia mais falar. Parece que as poções de gosto ruim, os encantamentos soprados em suas orelhas e as maldições acabaram com a sua possibilidade de continuar falando com humanos.

Contudo, o legado de Baltazar o fez continuar sendo amado por todos na aldeia, onde as pessoas cuidavam dele e lhes agradeciam por todos os momentos engraçados e pelo progresso que ele trouxe, mesmo sem querer, para a aldeia, agora elevada a vila.

O tempo passou, todas morreram, como infelizmente acontece, inclusive Baltazar, o feiticeiro e os ogros.

Naqueles tempos, existia naquela aldeia uma coisa que anda escassa no mundo: a gratidão. Será que se fosse hoje, o burrinho viveria feliz até o fim de seus dias?

Acho que não. Nós, humanos, não somos assim, tão praticantes da humildade e da gratidão genuína dos burrinhos, cavalos e jumentos, que infelizmente nunca puderam falar conosco, mas trazem em si, como vimos lá no começo, uma inteligência e uma sensibilidade que desprezamos.

Afinal, quais são os “burros”, os “jumentos” e os “asnos” nisso tudo?

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