Cheiro de merendeira

A crônica de Susana Furtado Dias

É impressionante o poder que a memória olfativa exerce sobre a gente. Em questão de segundos te transporta para lugares muito marcantes: uma viagem inesquecível, a primeira “festinha americana”, aquelas provas da quinta série, fresquinhas, com letras azuis encharcadas de álcool, o carpete molhado do cinema em dia de chuva, bolo de fubá com erva-doce, porão da casa de vó… Basta apanhar em desaviso a fragrância de cada um desses momentos para entrar na cápsula do tempo das lembranças.

Um cheiro em especial me faz viajar nas vielas mais profundas dos meus guardados pueris: O aroma de merendeira. Uma mistura de suco de laranja e garrafa de plástico, maçã com casca lavada, pão, mortadela e guardanapo. Sou capaz de escutar até aquele “tec” da abotoadura, saltando dos meus dedinhos miúdos, cheios de dobras, e sentir os frisos da alça branca de plástico, enrolada no meu pulso. Buscando mais um pouquinho me lembro da Magali, com sua clássica melancia nas mãos, estampada na minha dura caixinha vermelha quadrada, mas como o jardim do outro é sempre mais florido, desejava mesmo era a lancheira do Carlos que tinha compartimentos, garrafa com canudinho e ziploc. Achava aquilo tão chique! Coisa de escola de sessão da tarde.

Sempre fui inquieta, com uma pressa danada de vida. Se o recreio tinha quinze minutos, engolia o lanche em três, no máximo cinco, para não perder o jogo: de futebol, queimada, vôlei ou o pique: esconde, altinho, bandeira… Qualquer um deles, o que interessava mesmo era estar junto da turma. Aquela gritaria de crianças descendo as escadas em atropelo, batendo as lancheiras umas nas outras, em disputa pelo melhor cantinho para compartilhar merenda, figurinha, bola de gude e histórias. Mal sabíamos que ali estávamos cultivando o mais fiel e autêntico protótipo de tudo o que viríamos ser.

Há pouco tempo retornei à escola onde descobri as letras, vitórias e frustrações. Incrível como, passando pelo lugar onde habitualmente lanchava com alguns colegas, senti o cheiro do recreio. O espaço em que riscávamos a amarelinha com giz, entre a escada dos banheiros e o pátio coberto, parecia tão grande aos sete, oito anos! Agora era capaz de ir do céu ao inferno com apenas dois ou três passos mais largos e desconfio que não seja apenas pelo fato de eu ter crescido – o que nem foi tanto assim – mas porque as asas da imaginação parecem inversamente proporcionais aos aniversários vividos. 

Com cuidado, percorri nesse dia cada pedaço ilustrado pelas nossas brincadeiras – o maior carimbo da infância. Enxerguei a nossa enorme roda de adoleta, escutei os gritos e senti até uma pontada na palma da mão quando me lembrei do “quem saiu foi tu!”. A cantina mudou de lugar, mas o barulho das canecas de alumínio, esquentadas pelo maravilhoso curau de milho das sextas-feiras, me veio aos ouvidos. Sentei no degrau do pátio, me debulhei em lágrimas de nostalgia assistindo a um filme que durou cerca de quatro anos, passado há mais de três décadas e que estará para sempre dentro de mim.

Quando estava me preparando para ir embora, vi duas crianças na porta da saída, sem lancheiras.  Outra passou por mim correndo, tropeçou e deixou cair a mochila que apanhei, lhe devolvendo. Ela me agradeceu, enfiou a mãozinha dentro do bolso de fora e pegou uma maça embrulhada no guardanapo: 

– Aceita tia? E aquele cheiro encantado me invadiu novamente. Percebi que eu nunca soube ao certo quando deixei de usar merendeira, mas não sei dizer até hoje quando a infância resolveu me deixar. 

Nós usamos cookies e outras tecnologias semelhantes para melhorar a sua experiência em nossos serviços, personalizar publicidade e recomendar conteúdo de seu interesse. Ao utilizar nossos serviços, você concorda com tal monitoramento. Aceitar Saiba Mais