Cabe “lei maria da penha” entre vizinhos?

Os precedentes do Judiciário quanto a aplicação da Lei 11.340/2006 em condomínio vertical

 

Dentre as atribuições que acumulo enquanto Assessor Jurídico da Polícia Militar do Estado de Minas Gerais, está a emissão de parecer em Auditoria dos chamados crimes violentos (Estupro Consumado; Estupro de Vulnerável Consumado; Estupro de Vulnerável Tentado; Estupro Tentado; Extorsão Consumado; Extorsão Tentado; Extorsão Mediante Sequestro Consumado; Homicídio Tentado; Roubo Consumado; Roubo Tentado; Sequestro e Cárcere Privado Consumado; Sequestro e Cárcere Privado Tentado e Homicídio Consumado).

 

Felizmente, conforme amplamente noticiado pela mídia (vide no melhor site de notícias da Região https://barbacenaonline.com.br/13a-regiao-tem-a-menor-taxa-de-crimes-violentos-de-todo-estado/ e repercutido nacionalmente em https://g1.globo.com/mg/zona-da-mata/noticia/sem-nenhum-homicidio-em-2017-barbacena-esta-entre-as-15-cidades-menos-violentas-do-pais-segundo-ipea.ghtml) pelo menos desde 2017, Barbacena sempre é apontada como um das cidades menos violentas do Brasil.

 

Fica aqui meus mais sinceros cumprimentos à família do Nono Batalhão e da Décima Terceira Região da PMMG pelos resultados positivos.

 

Enfim, fato é que nos últimos cinco anos, além do Direito Civil e do Direito Administrativo, o Direito Penal passou discretamente a fazer parte da minha vida, e assim aqui vai meu primeiro e humilde ensaio na área. Tema escolhido: Maria da Penha!

 

A Lei 11.340/2006 é famosa em terras tupiniquins. Costumo dizer a meus alunos que primeiro surge a necessidade e o Direito vem depois em socorro ao clamor da sociedade. Infelizmente, uma senhora precisou ser agredida quase até a morte e quedar cadeirante para que a violência doméstica fosse apurada e punida com maior rigor.

 

E o que falar de inovador sobre uma legislação já tão conhecida?

 

Bom, como adepto do ambiente acadêmico, creio que as melhores respostas partem das melhores perguntas! Logo, parto o foco central de uma indagação:

 

É CABÍVEL A APLICAÇÃO DA LEI MARIA DA PENHA ENTRE VIZINHOS?

 

E qual minha surpresa quando além de encontrar precedentes forenses, ainda me deparo que um deles concedeu medida protetiva em favor de homem homossexual que era agredido sistêmica e psicologicamente por seus vizinhos de condomínio.

 

Como o processo corre em Segredo de Justiça (Processo: 0718823-58.2021.8.04.0001) não é possível acessar na íntegra o conteúdo da decisão. Porém conforme publicado pelo sítio eletrônico especializado MIGALHAS em 11 de setembro de 2021, é possível a compreensão da inteligência e inovação da concessão de medida protetiva fora da previsão expressa legal:

 

Homossexual consegue medida protetiva em condomínio por Maria da Penha

O homem foi ofendido por sua orientação sexual, sendo chamado de “bixinha” e “viadinho” pelos seus vizinhos, e posteriormente levou empurrões e golpes na cabeça.

 

Sábado, 11 de setembro de 2021

 

 

O juiz de Direito Áldrin Henrique de Castro Rodrigues, de Manaus/AM, concedeu medidas protetivas em favor de um homem homossexual que foi agredido por seus vizinhos em condomínio.

 

O magistrado aplicou a lei Maria da Penha por considerar que a norma protege grupos vulneráveis e que as agressões foram feitas em ambiente condominial, que pode ser comparado ao ambiente doméstico.

 

Consta da inicial que o homem foi ofendido por sua orientação sexual, sendo chamado de “bixinha” e “viadinho” pelos seus vizinhos. Posteriormente, ele foi agredido fisicamente com empurrões e golpes na cabeça, ficando com hematomas.

 

A defesa do homem argumentou que ele foi vítima de homofobia, pois as atitudes dos vizinhos foram motivadas por “preconceito e discriminação, não podendo ser tolerado nos dias atuais, onde existe a liberdade de orientação sexual”.

 

Lei Maria da Penha

 

Ao apreciar o caso, o juiz Áldrin Henrique de Castro Rodrigues ponderou que, embora a lei Maria da Penha não seja aplicável a casos como este, “tem-se que a legislação em questão veio por uma necessidade de trazer segurança à mulher vítima de violência doméstica e familiar”.

 

Nesse sentido, o magistrado considerou que o ambiente condominial pode ser considerado como doméstico, pois os apartamentos são bastante próximos, “ressaltando que a legislação em comento é aplicável, inclusive, em casos de violência que envolvem vizinhança”.

 

O juiz, então, concluiu que as medidas protetivas podem ser deferidas em benefício de grupos vulneráveis, historicamente fragilizados pela omissão legislativa:

 

“Nada impede que o Magistrado amplie o alcance da Lei de Violências, não para aplicá-la na integralidade, mas apenas na parte que determina que se evite novos ilícitos ou potenciais desarmonias nas relações entre vizinhos, como no caso em apreço.”

 

Assim, e por fim, o juiz aplicou a lei Maria da Penha para:

 

    Proibir que os vizinhos se aproximem da vítima e de seus familiares, sendo fixado um limite mínimo de 300 metros de distância;

    Proibir que os vizinhos mantenham contato com a vítima e seus familiares seja por telefonema, e-mail, WhatsApp ou qualquer meio direto ou indireto.

 

(…)

 

Processo: 0718823-58.2021.8.04.0001

 

O caso está sob segredo de justiça.

 

https://www.migalhas.com.br/quentes/351464/homossexual-consegue-medida-protetiva-em-condominio-por-maria-da-penha

 

 

A decisão minimamente pitoresca chama atenção por dois pontos bem sensíveis: a vítima era do sexo masculino e os agressores eram seus vizinhos.

 

Por força expressa da Lei 11.340/2006, a vítima amparada pela Lei Maria da Penha deve ser do sexo feminino, presumindo uma vulnerabilidade do gênero diante de violência física, verbal, moral ou psicológica cujo agressor pode ser o marido, o companheiro, o pai, o irmão ou qualquer outra pessoa que coabite a residência da mulher agredida.

 

Aliás, sobre outras vítimas protegidas pelo espírito da Lei, o Superior Tribunal de Justiça divulgou em seu site oficial:

 

O alvo da Lei Maria da Penha não se limita à violência praticada por maridos contra esposas ou companheiros contra companheiras. Decisões do STJ já admitiram a aplicação da lei entre namorados, mãe e filha, padrasto e enteada, irmãos e casais homoafetivos femininos. As pessoas envolvidas não têm de morar sob o mesmo teto. A vítima, contudo, precisa, necessariamente, ser mulher.

 

Segundo o ministro do STJ Jorge Mussi, a Lei Maria da Penha foi criada “para tutelar as desigualdades encontradas nas relações domésticas, de coabitação ou de hospitalidade”, mas embora tenha dado ênfase à proteção da mulher, “não se esqueceu dos demais agentes destas relações que também se encontram em situação de vulnerabilidade, como os portadores de deficiência”.

 

Com esse propósito, a Lei Maria da Penha alterou o artigo 129, parágrafo 9º, do Código Penal, agravando a pena para crimes de violência doméstica contra vítimas em geral. O dispositivo, que previa a pena de seis meses a um ano, foi alterado com a redução da pena mínima para três meses e o aumento da máxima para três anos, acrescentando-se mais um terço no caso de vítimas portadoras de deficiência.

 

Em um caso julgado pela Quinta Turma do STJ, no qual um homem foi denunciado por agredir o próprio pai, a defesa alegou a inaplicabilidade do artigo 129, parágrafo 9º, do Código Penal, sob o fundamento de que, como a redação do parágrafo 9º foi alterada pela Lei Maria da Penha, o dispositivo só seria destinado aos casos de violência contra a mulher.

 

O ministro Jorge Mussi, relator do recurso, apesar de reconhecer que a Lei 11.340 trata precipuamente dos casos de violência contra a mulher, entendeu que não seria correto afirmar que o tratamento mais gravoso estabelecido no Código Penal para os casos de violência doméstica seria aplicável apenas quando a vítima fosse do sexo feminino.

 

De acordo com o ministro, “embora as suas disposições específicas sejam voltadas à proteção da mulher, não é correto afirmar que o apenamento mais gravoso dado ao delito previsto no parágrafo 9º do artigo 129 do Código Penal seja aplicado apenas para vítimas de tal gênero pelo simples fato desta alteração ter se dado pela Lei Maria da Penha” (RHC 27.622).

 

https://www.stj.jus.br/sites/portalp/Paginas/Comunicacao/Noticias-antigas/2017/2017-08-06_08-00_A-jurisprudencia-do-STJ-nos-11-anos-da-Lei-Maria-da-Penha.aspx

 

Assim, o STJ sinaliza que a violência doméstica a ser combatida e punida com maior rigor não está necessariamente limitada ao gênero da vítima. Todavia, mesmo havendo forte precedente no Superior Tribunal de Justiça que estende a aplicação da Lei Maria da Penha em favor de vítima do sexo masculino (o pai idoso do Autor, conforme transcrição anterior), reside a dúvida:

 

AMBIENTE CONDOMINIAL TAMBÉM DEVE SER CONSIDERADO COMO AMBIENTE DOMÉSTICO?

 

Como muitos desses processos correm em segredo de Justiça, não é exatamente fácil encontrar as sentenças e decisões que aplicam a Lei 11.340 fora do contexto lamentavelmente habitual de marido agredindo a esposa, muito menos a aplicação da Lei Maria da Penha entre vizinhos condôminos, porém sítios eletrônicos especializados já noticiam a novidade:

 

A Justiça já tem decidido em alguns casos em favor da aplicação da Lei Maria da Penha em caso de brigas de vizinhos.

 

Nessa matéria O tribunal de Justiça de São Paulo, entendendo ser necessária a aplicação da Lei Maria da Penha. Uma série de agressões e xingamentos dirigidos a uma senhora de 81 anos por causa da poda de uma árvore levou o juiz da Vara Única de Ilhabela a usar a Lei Maria da Penha (Lei 11.340/2006) para impedir que a agressora se aproximasse da vítima.

 

 Nesse outro exemplo a Lei Maria da Penha foi aplicada em uma briga de vizinhos, em proteção a um homem, que foi agredido pelo vizinho. A juíza May Melke do Amaral Siravegna, da 4ª Vara Criminal de Campo Grande, Mato Grosso do Sul, deferiu medida protetiva para o agredido, impedindo o agressor de se aproximar dele sob pena de prisão.

 

Em que pese a divergência pelo uso da Legislação especial para esses casos, três apontamentos são necessários em seu favor.

 

Primeiro, o ambiente de vizinhança é um ambiente doméstico. A proximidade de apartamentos, casas geminadas, divisas de tapume, enseja o ambiente doméstico. Uma relação muito próxima geograficamente, e até de conhecimento entre as pessoas.

 

Uma coisa é alguém agredir um desconhecido no trânsito e ser aplicado o que está tipificado do Código Penal. Outra, é a violência perpetrada por vizinhos, que traz uma atmosfera de ambiente doméstico.

 

Em segundo lugar, como já dito anteriormente, as medidas protetivas tem uma amplitude de maior alcance na proteção das vítimas, bem como um apelo social maior, haja vista ter uma reprovação social maior que uma simples agressão.

 

E terceiro, a briga entre vizinhos e a violência nesse sentido, tem muitas vezes como alvo uma mulher, e as vezes idosa, que por morar só, aparenta maior fragilidade, e gera para o agressor uma oportunidade de impunidade e baixa resistência da vítima.

 

https://rochadvogados.com.br/a-lei-maria-da-penha-pode-ser-aplicada-em-briga-de-vizinhos/

 

A aplicação não é pacífica no Poder Judiciário e encontra certa resistência dos magistrados, como se banalizasse a ira da lei mais rigorosa em situação que ultrapassa as quatro paredes de um quarto e alcança os quatro muros de um condomínio, porém ainda assim sempre caberá a aplicação ainda que subsidiária (ou mais adequada na técnica clássica) do Código de Processo Penal.

 

Nesse sentido, segue a previsão dos incisos II e III Art. 319 do CPP que podem ser utilizados em situações diversas da habitual incidência da Lei 11.340:

 

Art. 319. São medidas cautelares diversas da prisão: (Redação dada pela Lei nº 12.403, de 2011).

 

(…)

 

II – proibição de acesso ou frequência a determinados lugares quando, por circunstâncias relacionadas ao fato, deva o indiciado ou acusado permanecer distante desses locais para evitar o risco de novas infrações; (Redação dada pela Lei nº 12.403, de 2011).

 

III – proibição de manter contato com pessoa determinada quando, por circunstâncias relacionadas ao fato, deva o indiciado ou acusado dela permanecer distante; (Redação dada pela Lei nº 12.403, de 2011).

 

Fato é que o vizinho talvez não se encontre tão vulnerável quanto uma esposa ou um pai idoso lamentavelmente vulnerável a violência dentre de sua própria residência. Porém, diante da peculiaridade do caso concreto, pode o condômino estar em situação de fragilidade física ou emocional digna do socorro do Poder Judiciário.

Concluindo:

Nota-se portanto que, em caso de violência física ou até mesmo psicológica (mais frequente no caso do título deste artigo), ocorrida em ambiente condominial, seja a vítima do sexo masculino ou feminino, embora seja inovador ou polêmico o pedido da ira da Lei Maria da Penha contra o agressor  nessas situações, subsidiariamente sempre será cabível o Art. 319 do CPP como rede de salvação em proteção de vizinho e/ou condômino agredido em ambiente extensivamente considerado como doméstico.

 

Comunique ao Portal Barbacena Online equívocos de redação, de informação ou técnicos encontrados nesta página clicando no botão abaixo:

Nós usamos cookies e outras tecnologias semelhantes para melhorar a sua experiência em nossos serviços, personalizar publicidade e recomendar conteúdo de seu interesse. Ao utilizar nossos serviços, você concorda com tal monitoramento. Aceitar Saiba Mais