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Cidade das (P)Rosas: Barbacena na vida e na obra do maior escritor brasileiro do século XX

Em 1933, chegou em Barbacena um médico recém-formado chamado João. Ele veio para trabalhar como médico no Batalhão da Polícia Militar após se formar na UFMG, em Belo Horizonte. Apesar de ter sido aprovado entre os primeiros colocados no concurso, ele não ficaria muito tempo nem na carreira militar, nem na carreira de médico. Após alguns anos, ele se tornaria diplomata e, depois, se destacaria no ofício de escritor: João Guimarães Rosa é amplamente considerado o maior escritor brasileiro do século XX.

Guimarães Rosa (1908 – 1967) nasceu em Cordisburgo, no norte de Minas, mas morou em muitos outros lugares. Durante a adolescência, passou um tempo em São João del Rei, e depois foi para Belo Horizonte, onde realizou seus estudos. Após sua passagem por Barbacena, morou na Europa e na América Latina, em países como Alemanha, França e Colômbia, como funcionário do Itamaraty. Rosa teve uma vida cosmopolita, morando e visitando diversas partes do mundo. Era também um estudioso de idiomas, aprendendo e dominando mais de dez línguas.

Apesar disso, Rosa se manteve fiel durante toda a vida à sua terra natal, o norte de Minas, e ao linguajar típico da região. De uma certa forma, isso está sintetizado em sua obra com a frase “O sertão está em toda parte”, no início de Grande Sertão: Veredas, e em outras frases semelhantes ao longo da obra.

O autor se insere na terceira fase do modernismo brasileiro, que tem como características a volta ao passado e a valorização da tradição. A literatura regionalista, comum nesse período, introduz dentro da produção literária erudita temas e expressões típicos da tradição oral e das regiões menos urbanizadas do Brasil.

Mas a obra de Rosa vai muito além de qualquer categorização. Em seus contos, novelas e em seu único romance, Rosa apresenta a linguagem e a descrição dos costumes do norte de Minas de uma maneira muito mais acentuada que qualquer escritor regionalista até então. Sua prosa é baseada nos dialetos do grande sertão, trabalhada junto com seu enorme conhecimento de outras línguas. O resultado é uma obra hipnotizante, ainda que desafiadora, com uma escrita cheia de oralidade e que traz o som da terra em seu bojo.

Guimarães Rosa em Barbacena

Antiga casa de Guimarães Rosa, supostamente no nº 57 da Avenida Bias Fortes (foto: Acervo Digital/Secult)

Segundo a revista SIM! Magazine, em post no Facebook, Guimarães Rosa passou seus primeiros dias em Barbacena no Grande Hotel, que ficava na esquina entre a Praça dos Andradas e o Beco Treze. Posteriormente, o escritor se mudou para o número 57 da Avenida Bias Fortes. Na época, nesse endereço havia uma casa histórica que foi demolida (foto acima), assim como o Grande Hotel. Não é possível ter certeza sobre o local exato onde ficava essa casa, mas o número 57 da Avenida Bias Fortes hoje é ocupado por um edifício residencial.

Ainda segundo a SIM! Magazine, Guimarães Rosa trabalhava onde hoje (a postagem é de em 2014) é o prédio do Colégio da Aplicação Santo Agostinho (no casarão da Praça do Rosário? no anexo do IF Sudeste?). Nesse local, ele atendia os militares e emitia atestados para os funcionários da fábrica Ferreira Guimarães.

Em Barbacena, Guimarães Rosa travou contato com o também médico Oswaldo Fortini e com o também escritor Osvaldo França de Lima. Este é um outro autor ilustre, que foi membro da Academia Brasileira de Letras e que morou por um tempo em Barbacena, segundo conta o historiador Edson Brandão no site da Academia Barbacenense de Letras.

Segundo informações não confirmadas, a segunda filha de Guimarães Rosa, chamada Agnes, nasceu em Barbacena durante o tempo em que o escritor morou na cidade.

Barbacena em Guimarães Rosa

A principal obra de Guimarães Rosa é o monumental romance Grande Sertão: Veredas, de 1956, que descreve as aventuras de Riobaldo e Diadorim no sertão de Minas. Esse romance é uma das obras mais importantes da literatura em língua portuguesa e é frequentemente considerado um dos melhores livros da história, em qualquer idioma e de qualquer século. Mas hoje vamos falar de uma obra mais simples, publicada quatro anos depois, em 1962: Primeiras Estórias. O livro é uma coletânea de 21 contos, entre eles Sorôco, sua mãe, sua filha.

Sorôco, sua mãe, sua filha é um pequeno conto ambientado em uma estação de trem no norte de Minas. O personagem Sorôco tem uma mãe e uma filha com problemas mentais, e vai enviá-las para Barbacena de trem – o mesmo meio de transporte no qual o próprio Guimarães Rosa chegou por aqui 29 anos antes. “Para onde ia, no levar as mulheres, era para um lugar chamado Barbacena, longe. Para o pobre, os lugares são mais longe” (p. 63).

Como em outros contos de Rosa (notadamente em A Terceira Margem do Rio), em Sorôco, sua mãe, sua filha acontecem coisas inexplicáveis à racionalidade comum, como se os verdadeiros motivos para as ações dos personagens estivessem em realidades que o leitor não consegue acessar. Esse apelo ao mágico e ao irracional faz com que a obra de Guimarães Rosa seja, frequentemente, associada ao Realismo Mágico, cujo principal expoente foi o colombiano Gabriel García Márquez, e ao assim chamado Realismo Animista, representado principalmente pelo moçambicano Mia Couto (que é um admirador confesso de Rosa).

Em toda a obra de Rosa, Barbacena é mencionada apenas nessa ocasião. Mas é importante considerar que a loucura é um tema importantíssimo em vários de seus escritos. Não se pode afirmar com certeza, mas suponho que o interesse por esse tema em sua obra tenha surgido durante sua estadia como médico em Barbacena. Nesse sentido, é possível considerar que a “Cidade dos Loucos” influenciou, ainda que de forma subterrânea, toda a obra de Rosa.

Única menção em sua obra oficial. Porque nossa cidade é também mencionada no discurso de posse na Academia Brasileira de Letras. Apesar de não ser uma obra oficial, feita para ser impressa, o discurso possui a linguagem personalíssima da escrita de Rosa, portanto não pode ser deixado de lado. Nesse discurso, proferido durante a cerimônia de posse no dia 16 de novembro de 1967 (três dias antes da morte do autor), ele cita Barbacena como a “sagaz e espiritual”. O discurso pode ser lido no site na Academia Brasileira de Letras.

Essas menções a Barbacena no conto Sorôco, sua mãe, sua filha e no discurso de posse da ABL, além do tema da loucura em toda a sua obra, mostra que Guimarães Rosa jamais se esqueceu de Barbacena, apesar de sua passagem por aqui ter sido relativamente curta. Já Barbacena, ao que tudo indica, se esqueceu de Guimarães Rosa. Não há, pelo que eu sei, nem um singelo memorial em espaços públicos em sua homenagem. A casa onde ele morou foi demolida, e a sua memória, apagada.

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