O livro de hoje da Coluna Cidade das (P)Rosas, do Barbacena Online, é “Crônicas exusíacas & estilhaços pelintras”, do escritor carioca Luiz Antônio Simas. O livro é uma coletânea de textos curtos que foi finalista do Prêmio Jabuti, na categoria crônica, em 2024. A indicação ao maior prêmio literário do Brasil já seria suficiente para justificar uma coluna sobre a obra, mas não é apenas por isso que o livro está aqui. É porque, em meio à profusão de textos e personagens, de transgressões exusíacas e centelhas, um estilhaço pelintra saiu do Rio de Janeiro e atingiu Barbacena. Diferentemente das outras indicações da coluna, esta obra não faz parte do acervo da Biblioteca Pública Municipal Honório Armond.
Primeiramente, trata-se de um livro de crônicas. A crônica é um gênero textual que se localiza na interseção entre jornalismo e literatura. É por causa da crônica, sobretudo, que todo jornalista se sente um pouco como um colega de profissão de Machado de Assis. Como texto jornalístico, a crônica é um relato verídico sobre algum acontecimento do cotidiano; como texto literário, a crônica é escrita de maneira leve e criativa, sem se preocupar com o rigor jornalístico. Não se preocupa com os ricos e poderosos nem dá vida a personagens fictícios, mas busca extrair a poesia e a beleza dos fatos comuns das pessoas comuns.
Nesse sentido, o livro de Luiz Antônio Simas (de agora em diante L. A. Simas, como está na capa do livro) é exemplar. Ao longo de seus 77 textos curtos, ele nos apresenta a uma procissão de personagens humildes, simples, cômicos, insignificantes, que passaram despercebidos pelos repórteres e pelos historiadores, mas que expressam a encantadora alma e o encantador corpo das ruas, das praças, das quadras de escolas de samba, dos bares, dos morros e dos terreiros do Rio de Janeiro. O autor descreve foliões, sambistas, frequentadores de botecos, pessoas anônimas preocupadas em fazer o que realmente importa: viver o dia a dia. É tudo muito banal, e por isso mesmo extraordinário. L. A. Simas consegue, como todos os grandes cronistas, um impensável milagre: extrair, da terra arrasada do cotidiano, a insuspeitada poesia da banalidade. O cotidiano, em L. A. Simas, é uma máscara, um disfarce. O mundo é, hora após hora, um reiterado milagre, e essa magia se revela nas referências a entidades de religiões de matriz africana.
Na curta apresentação, o autor já nos explica sobre seus temas:
“Breves ensaios sobre o colonialismo, outros sobre mitos e ritos, entrecruzam-se com pequenas aventuras cotidianas de sambistas, papagaios de piratas, apontadores do jogo do bicho, ambulantes, profetas, namorados, membros do esquadrão da morte, defensores intransigentes da vida, espíritos desencarnados, malandros maneiros, erês, assombrações, defuntos frescos, bodes, cachorros, toques de atabaques, sons de agogôs e de rajadas de metralhadora retratadas em estilhaços desconexos.”
É o Rio de Janeiro, não o “cordato”, e sim o “violento”, o Rio de Janeiro disputado e marginalizado, que está contido nas páginas do livro. Para compreender isso é preciso entender que L. A. Simas não é uma pessoa, é um protótipo, um arquétipo, o arquétipo do carioca. Vejamos: é sambista e ligado a escolas de samba; adora frequentar botecos; gosta de cerveja e futebol. L. A. Simas é a cara e a coragem do Rio de Janeiro, e isso se reflete em cada crônica, em cada parágrafo, em cada frase que ele escreve, com suas gírias, suas expressões populares, suas palavras oriundas de idiomas africanos.
Tudo isso com muito humor e leveza, o que faz dessa uma leitura fluida e deliciosa. L. A. Simas escreve como quem fala, como quem conversa em um boteco, de forma despretensiosa e engraçada. As páginas são passadas rapidamente, e quando menos se percebe, o livro, infelizmente, chega ao fim.
O estilhaço que atingiu Barbacena
Nossa crônica de interesse se chama “Ninguém foi funcionário público em Barbacena”. A crônica foi escrita após o autor ler uma entrevista na qual um político contemporâneo afirmou ter feito uma regressão e descoberto que, em uma vida passada, havia sido ninguém menos que d. Pedro I. A leitura da entrevista despertou curiosidade em Luiz Antônio, que procurou saber mais sobre o assunto. Em pesquisas pela internet, descobriu uma grande quantidade de brasileiros que afirmavam ter sido figuras importantes da história em suas vidas passadas. “Reunimos, no Brasil, hordas de centuriões romanos, imperadores chineses, beduínos do deserto, faraós, rainhas, pajés, profetas do Velho Testamento, apóstolos, guerreiros tuaregues, cavaleiros da infantaria de Gengis Khan, astrônomos queimados pela Inquisição, papas, dançarinas de cabarés parisienses (invariavelmente assassinadas por ciúmes) e quejandos”.
Ninguém afirmava ter sido algo banal em sua vida passada – e aqui L. A. Simas faz um esforço para imaginar o que seria a vida mais banal imaginável. “Não encontrei um mísero caso em que o sujeito tenha descoberto que foi funcionário de uma repartição pública em Barbacena, por exemplo”. Para Luiz Antônio, o ápice da banalidade, da vida normal e sem graça, é ser funcionário público em Barbacena. Percebam que, para ele, ser uma dançarina de cabaré assassinada por ciúme é menos banal que ser um funcionário público barbacenense!
O que muitos poderiam ver como uma demonstração de desprezo por nossa Barbacena querida, na verdade, não o é. Como dito acima, a crônica é um gênero literário que se destaca por seu enfoque no que é banal, no que é cotidiano, no que não é histórico. Como disse o próprio Luiz Antônio, em matéria do Estadão publicada na última segunda-feira (21): “Não sou fascinado pela ‘Grande História’. Não tenho interesse pelo que acontece nos gabinetes. Eu gosto das ‘pedrinhas miúdas’ até porque vim de uma família que não tinha e não tem noção de que cada um deles é dotado de historicidade”.
No fim das contas, L. A. Simas está mais interessado nos funcionários públicos do que nos imperadores chineses e na infantaria de Gengis Khan. Escolher Barbacena como ápice do banal pode ser visto, neste contexto, como uma declaração de amor. Nós te perdoamos, L. A. Simas!
Sobre o autor
L. A. Simas é historiador, professor, escritor e compositor. Trabalha com temas da cultura popular, especialmente sobre religiões afro-brasileiras. Tem mais de 30 livros publicados, de crônicas, ensaios, e outros gêneros, mas não de ficção. Criou o projeto Ágoras Cariocas, durante o qual dava aulas em lugares públicos do Rio de Janeiro, como quadras de escolas de samba, ruas e até cemitérios. Atualmente, fixou seu projeto de aulas públicas em um bar no bairro da Tijuca, na zona norte da cidade. Além de ter sido finalista do Prêmio Jabuti por Crônicas exusíacas & estilhaços pelintras, venceu o prêmio com o livro Dicionário de História Social do Samba, escrito em parceria com Nei Lopes, na categoria Teoria e Crítica Literária, em 2015.