Por JGHeleno*
Convido para ouvirem a canção “Carcará”, de João do Vale a José Silva
Vocês vão observar que o uso do português nesta canção “tem erros gráficos e de concordância”. Pus essa afirmativa entre aspas para alertar que não há erro ali. Na arte, tudo pode, desde que tenha uma função expressiva. Nessa canção, as palavras assim usadas – avoa, inté, os burrego, imbigo – têm a função de criar cor local, ou seja, de deixar bem marcado o grupo humano que se vê e se projeta nas ações do carcará.
“Carcará
Lá no sertão
É um bicho que avoa que nem avião
É um pássaro malvado
Tem o bico volteado que nem gavião
Carcará quando vê roça queimada
Sai voando e cantando
Carcará
Vai fazer sua caçada
Carcará
Come inté cobra queimada
Mas quando chega o tempo da invernada
No sertão não tem mais roça queimada
Carcará mesmo assim não passa fome
Os burrego que nasce na baixada
Carcará
Pega, mata e come
Carcará
Não vai morrer de fome
Carcará
Mais coragem do que homem
Carcará
Pega, mata e come
Carcará é malvado, é valentão
É a águia de lá do meu sertão
os burrego novinho num pode andar
ele puxa no imbigo até matar
Carcará
Pega, mata e come
Carcará
Não vai morrer de fome
Carcará
Mais coragem do que homem
Carcará
Pega, mata e come
Essa canção fala da vida. Os artistas costumam focar insistentemente na vida, como tema de suas artes. Paulinho da Viola (Pecado capital): “É preciso viver/ E viver não é brincadeira não”. Vinicius de Moraes (Samba da bênção): “A vida não é brincadeira, amigo/a vida é arte do encontro embora haja tanto desencontro pela vida”. Palavras de Machado de Assis em Quincas Borba: “Ao vencido, ódio ou compaixão: ao vencedor, as batatas”. A seguir, ele diz ainda: “A paz, nesse caso, é a destruição; a guerra é a conservação”. Guimarães Rosa: (Grande sertão: Veredas): “Viver é muito perigoso” .
A vida é o grande bem. Por isso, para preservar e defendê-la, muitas vezes é preciso ser mais coragem do que homem. A vida tem sua ambiguidade. Muitas vezes afirmamos que não há vida sem morte, e a morte é uma parte da vida. Donde sua ambiguidade. Se temos vida, é porque muitos morreram para que a tenhamos. Como numa árvore: Quantas sementes se perdem e morrem, para que apenas uma germine? Ou nem uma?
Para o homem, o instrumento principal para garantir a conquista e a conservação da vida é o pensar-e-sentir. O pensar remete à razão; o sentir remete ao convívio. Tanto o pensar quanto o sentir são desafiantes, por isso é que viver é tão perigoso. Às vezes até dói.
Para terminar em trova:
A vida às vezes me erige
desafios, que eu não quero
vencê-los, como ela exige,
com ações de homem fero.
- ABL, AJL, LEIAJF, SBPA, UBT.