Publicidade Local

Pauta em prosa, verso em trova (volume 114)

Por JGHeleno*

 

 

 

Convido para ouvirem a canção “Carcará”, de João do Vale a José Silva

 

 

 

Vocês vão observar que o uso do português nesta canção “tem erros gráficos e de concordância”. Pus essa afirmativa entre aspas para alertar que não há erro ali. Na arte, tudo pode, desde que tenha uma função expressiva. Nessa canção, as palavras assim usadas – avoa, inté, os burrego, imbigo – têm a função de criar cor local, ou seja, de deixar bem marcado o grupo humano que se vê e se projeta nas ações do carcará.

 

 

 

 

 

“Carcará

 

Lá no sertão

 

É um bicho que avoa que nem avião

 

É um pássaro malvado

 

Tem o bico volteado que nem gavião

 

 

 

Carcará quando vê roça queimada

 

Sai voando e cantando

 

Carcará

 

 

 

Vai fazer sua caçada

 

Carcará

 

Come inté cobra queimada

 

Mas quando chega o tempo da invernada

 

No sertão não tem mais roça queimada

 

Carcará mesmo assim não passa fome

 

Os burrego que nasce na baixada

 

 

 

 

 

Carcará

 

Pega, mata e come

 

Carcará

 

Não vai morrer de fome

 

Carcará

 

Mais coragem do que homem

 

Carcará

 

Pega, mata e come

 

 

 

Carcará é malvado, é valentão

 

É a águia de lá do meu sertão

 

os burrego novinho num pode andar

 

ele puxa no imbigo até matar

 

 

 

Carcará

 

Pega, mata e come

 

Carcará

 

Não vai morrer de fome

 

Carcará

 

Mais coragem do que homem

 

Carcará

 

Pega, mata e come

 

 

 

Essa canção fala da vida.   Os artistas costumam focar  insistentemente na vida, como tema de suas artes. Paulinho da Viola (Pecado capital): “É preciso viver/ E viver não é brincadeira não”. Vinicius de Moraes (Samba da bênção): “A vida não é brincadeira, amigo/a vida é arte do encontro embora haja tanto desencontro pela vida”. Palavras de Machado de Assis em Quincas Borba: “Ao vencido, ódio ou compaixão: ao vencedor, as batatas”. A seguir, ele diz ainda: “A paz, nesse caso, é a destruição; a guerra é a conservação”. Guimarães Rosa: (Grande sertão: Veredas): “Viver é muito perigoso” .

 

A vida é o grande bem. Por isso, para preservar e defendê-la, muitas vezes é preciso ser mais coragem do que homem. A vida tem sua ambiguidade. Muitas vezes afirmamos que não há vida sem morte, e a morte é uma parte da vida. Donde sua ambiguidade. Se temos vida, é porque muitos morreram para que a tenhamos. Como numa árvore: Quantas sementes se perdem e morrem, para que apenas uma germine? Ou nem uma?

 

Para o homem, o instrumento principal para garantir a conquista e a conservação da vida é o pensar-e-sentir. O pensar remete à razão; o sentir remete ao convívio. Tanto o pensar quanto o sentir são desafiantes, por isso é que viver é tão perigoso. Às vezes até dói.

 

 

 

Para terminar em trova:

 

 

 

A vida às vezes me erige

 

desafios, que eu não quero

 

vencê-los, como ela exige,

 

com ações de homem fero.

 

 

 

 

 

  • ABL, AJL, LEIAJF, SBPA, UBT.

Destaques do dia