Pauta em prosa, verso em trova (volume 84)

JGHeleno*

 

 

Na produção de um autobiografia, é quase inevitável a referência à infância, pois esta fase da vida é fundamental no estabelecimento do universo interior de qualquer pessoa. Esse retorno à infância é uma revisitação, quando o autor olha sua meninice, não exatamente como ele a viveu, mas como a vêm seus olhos de adulto.

O autor do texto que registro abaixo pratica, ou cria uma dessas revisitações.

 

O MENINO QUE VENDIA GAIOLAS

 

 

 

 

 

O menino cresceu. O menino leu. O menino escreve. Não faz mais gaiolas. Vem tecendo a vida: urdiduras com linhas de tempo, amarradas com linhas certas e tortas… Ele quer saber como chegou aonde chegou. Linhas transversais, algumas fantásticas. Outras não tanto. Se todas apontassem no mesmo sentido, o tecido não teria sentido. O menino só quer desatar uns pontos, onde o tempo e as transversais se amarram.

Juca, um ponto chave. Vou voltar no tempo, à custa de simulação: deixar de ser o homem que sou agora. Tornar-me pequeno, não a ponto de negar o adulto.

Do balcão, Juca vê quando o menino põe o pé direito na beira da porta:

“Lá vem ele de novo: o menino. Olheiras. Trabalhou a noite inteira.  A última gaiola tinha defeito. Me desarmou, ao confessar (Está torta, mas já sei corrigir. É o compasso). Como agir de outro modo? Hoje lhe falo…”

– Me dá o gancho. Falou assim, mas de outra coisa, e pra outra pessoa. Pendurou-a perto da porta como de costume, e pagou: onze cruzeiros. A alegria do menino, o contentamento de ver convertido em grana o seu suor, desarmava-o sempre.

 

O de calças curtas e pés descalços, por sua vez, se afastava quase como uma pena, sem os pés no chão: “As quadradas não eram quadradas. Erros no compasso. As de teto redondo não tinham simetria. Faço melhor hoje. Saio logo que me paga. Temo que se arrependa. Ele faz assim porque quer. É comerciante… Diz isso aquele olhar desprovido de raiva, livre de qualquer velhacaria… Ao contrário: gestos suaves, olhar complacente. Ele quer me ajudar… Ele me compra sempre. O grandalhão da Prata lhe mostrou defeitos. Ele não ligou. Lia em mim, não minha obra, mas meu modo de intervir no mundo, meu querer grande mesmo em torno de um fazer pequeno. E sei que ele compra também minha boa-fé”.

 

Como tudo aqui termina em trova:

 

Escritor é sempre um outro

sem deixar de ser o mesmo

muito culto ou  pouco douto

não joga palavra a esmo. (JGHeleno)

 

Esta trova infringe uma das regras previstas pela UBT.

 

 

*ABL, AJL, UBT, LEIAJF

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