Seja uma criança, aproveite o espectáculo
Jairo Attademo
O caminhão era velho, mais que o motorista. E olhe que este já devia contar com algumas boas dezenas de voltas ao redor do Sol. Os pneus, alaranjados de poeira, pareciam ter ainda mais experiência de vida que o próprio veículo. A lataria, cinza, era cheia de pontos de ferrugem e buracos.
E lá vinha a velharia, não muito grande, não muito pequena, descendo a serra devagar, escapando do jeito que dava dos buracos, procurando alguma estrada entre eles.
A carroceria era o detalhe que chamava a atenção. Não trazia latas de leite e nem fardos de cana, não carregava sacos de grãos e nem toras de madeira. Por isso chamava a atenção das crianças, quase todas ranhosas e descalças, todas barrigudas. E de suas mães, em seus vestidos de tecido barato, amarelados de tanto sabão em pedra e finos de tanta labuta.
Os pequenos e os maiores, soltos como papagaios, puseram-se logo a correr atrás da velha lata ruidosa, atraídos pelo conteúdo da carga que sacudia a mais não poder. Comendo poeira, alguns se penduraram onde puderam, divertindo-se com a carona não pedida. As mães, coitadas, gritavam feito loucas, algumas puxando suas crias pelas orelhas.
E assim chegou o caminhão ao descampado, depois de passar pela rua e pelo que chamavam de campo de futebol. Crianças de todos os tamanhos rodeavam a coisa toda, tentando adivinhar o que havia naquela carga esquisita, que atiçava a curiosidade até dos adultos, mais pelo que não era do que pelo que poderia ser.
Não eram coisas que normalmente estavam acostumados a ver descendo a serra. Por ali passavam carros-de-boi, jardineiras, cavalos, carroças e caminhões levando víveres, mas hoje foi diferente.
Pelos vidros sujos do caminhão não dava para saber quem estava dentro dele, mas assim que as portas se abriram, quase caindo, saiu de lá o que parecia ser uma família inteira.
O motorista era um senhor baixinho, de óculos, talvez com sessenta anos, meio careca, bigode ralo, trajando um colete marrom aberto sobre uma camisa de mangas longas, usando botas e calças jeans. Tudo devidamente amarrotado e empoeirado, da bota aos bigodes.
Do outro lado saiu uma senhora que parecia ter mais ou menos a mesma idade do homem, mas os cabelos eram pretos que nem a asa da graúna. Parecia uma índia, a pele um pouco mais escura e avermelhada que a do motorista. Vinha com um vestido comprido, bem colorido e desbotado.
Da carroceria saiu outro casal, dessa vez bem mais jovem. Estavam pálidos. Qualquer um podia notar que estavam enjoados de sacudir ali atrás.
A moça parecia índia também, cabelos pretos longos, bonita, olhos grandes. Vestia algo não muito comprido e, ao descer, deixou os maiorzinhos atrapalhados com a visão de suas belas pernas. Parecia ter vinte e poucos anos.
O rapaz era comprido e magro. Tinha cabelos curtos, lisos e castanhos. As meninas disseram que não era feio, embora os meninos garantissem que era. Vestia uma camisa de mangas curtas, pequena para ele.
Logo os quatro começaram a desamarrar aqueles embrulhos e carregar aquelas peças de madeira, gambiarras de luzes, tábuas, canos, cordas, deitando tudo naquele terreno baldio ao lado do campo de futebol, que a prefeitura destinava para os ciganos.
Cavaleiros passavam e olhavam a movimentação. As crianças não arredavam pé. Os maiores se ofereceram para ajudar.
Como se estivessem acostumados a essas ofertas, os quatro agradeceram e aceitaram a ajuda de meia dúzia de moleques.
E a tarde foi terminando. Uma espécie de portão encimado por lâmpadas foi colocado virado de frente para a rua. Os maiores já sabiam o que era aquilo tudo, mas fustigavam os menores dizendo que não podiam contar.
Assim foram todos pra casa, depois que a noite tratou de esconder o local inteiro, já mal iluminado pelos postes da vila. É que o último transformador de luz ficava lá no começo da rua e a iluminação que fornecia no final parecia mais uma luz de vela.
Mal amanheceu e os pequeninos correram para o terreno. Os quatro ocupantes saíram de uma barraca de pano para conversar e beber café com alguns homens, que, em seguida, começaram a desenrolar uma lona.
O senhor de bigode e o moreno comprido puxaram uma corda enquanto dois homens seguraram o mastro. Assim a lona foi subindo e em alguns minutos já não havia dúvida sobre o que havia chegado à vila.
Um circo, gritavam felizes as crianças. Pequeno, mas um circo. Descolorido, de lona furada, de chão batido, mas um circo.
Tinha luzes penduradas por todo o perímetro, uma bilheteria na entrada e autofalantes tocando música estridente, ao mesmo tempo em que o rapaz falava “som, teste, som, um dois três”. Só podia ser um circo. O senhor e a mulher mais nova subiram numa escada e colocaram um letreiro:
Circo Leon Jaime.
Não é Léo Jaime, que apareceu cantando muitos anos depois. Era Leon, de leão.
No meio da criançada havia um muito curioso. Quando os quatro entraram, o baixinho se aproximou, aproveitando que as outras crianças tinham sido chamadas para almoçar.
Aproximou-se. Os quatro conversavam e riam, enquanto comiam. Dava pra ver as silhuetas. Era uma casa! Tinha tudo lá dentro, panelas, penico, canecas, garrafa, fogareiro, colchões, violão, baús, caixas, cheiro de comida e café. O moleque nem percebeu quando o magrelo comprido chegou atrás dele.
– O que está querendo aqui?
– Han? Eu?
-Sim, tem mais alguém aqui, além de você e eu?
-Ah, desculpa, eu, eu… só estava querendo… desculpa, já tou indo embora, disse o menino, fazendo menção de sair.
– Espera! Eu não mordo, disse o rapaz.
– É que eu vi vocês, achei tudo diferente, é um circo, eu nunca vi um de perto, queria ver a casa de vocês, achei legal o caminhão, esse monte de luzes.
O rapaz, demonstrando conhecimento sobre pestinhas, convidou o moleque para entrar e este aceitou, mais curioso que medroso.
Era uma casa com paredes de pano. O senhor veio em sua direção: quem é o intruso que ousou entrar em meus domínios? O garoto olhou para o comprido e para a senhora, que mantiveram as caras ainda mais fechadas. A moça bonita longe estava e longe ficou.
A senhora perguntou se ele queria conhecer a casa. O garoto fez que sim e ela respondeu: pois é isso aqui, não tem mais nada. E caíram na gargalhada. Logo ela perguntou o seu nome. Eram bonzinhos. O comprido trouxe uma caneca de café e perguntou: gosta de café de circo?
– Nunca bebi um, disse o menino.
– Pois experimente, disse o magrelo empurrando a caneca para ele.
– É igual ao da minha mãe, talvez um pouco mais ralo. Por que “de circo?”
Todos riram-se de novo. Logo ele percebeu que os quatro, inclusive a moça bonita, eram grandes gozadores. Quando ela se aproximou e pegou na mão dele para cumprimentá-lo, o pobrezinho engasgou com o café.
Nossa, como ela é bonita, pensou ele. Ela ouviu e agradeceu.
– Você ouve pensamento?
– Sim, eu tenho um poder especial que me faz ler pensamentos de crianças. E é sempre bom que alguém ache a gente bonita.
O senhor logo avisou: – Olha, ela é minha filha, não aceito desrespeito.
Que tipo de desrespeito poderia um menino de dez anos ter com uma mulherona daquelas? O menino entendeu, anos depois, que ela não tinha poder de ler pensamentos. Ele falou aquilo!
A mãe do garoto apareceu à porta da barraca.
– Até que enfim te achei! Logo vi que você só poderia estar aqui. Quer matar a gente de susto?
A senhora a convidou a entrar, o senhor foi logo puxando um banco e trazendo um café. A mãe do menino ficou toda sem jeito, deu bom dia, boa tarde, disse que não poderia se demorar.
Descobriu, curiosa-mor que era, que o senhor, depois de trabalhar num circo por muitos anos, resolveu montar a sua lona com a esposa, uma atriz que conheceu na estrada. Os dois faziam comédia e drama, além de cantar. Ele tinha talento para mágica e ela aprendera a atirar facas.
Veio primeiro o rapaz, a quem colocaram o nome de Jaime. O circo, que se chamava Leon, passou a ser “Leon Jaime”. Pouco depois veio a menina, Luana. Naquela época, a lona ainda não tinha buracos e as cores eram nítidas.
Os filhos, tão logo cresceram um pouco, passaram a atuar com os pais, que os alfabetizaram e ensinaram matemática, história e geografia, além dos números do circo. Eram sabidos.
No dia seguinte, o menino voltou à casa de pano. Especulador, quis saber quantos caminhões eram suficientes para levar o circo inteiro, imaginando que houvesse mais coisas para chegar. O velho circense respondeu que nunca menos que cinco caminhões.
Parece que o especula ficou satisfeito com a resposta. Afinal, o circo não era só aquilo e mais coisas iam chegar para a estreia à noite.
Ele ficou se perguntando quando chegariam os elefantes e os leões, a mulher barbada, o mágico, o trapezista, as motos, o globo da morte, os palhaços, as bailarinas e a banda de música. A imaginação durou pouco, pois o velho, apesar de ser um gozador, não levou a mentirinha muito longe. Para ele criança era coisa séria.
– Brincadeira, esse caminhão consegue carregar tudo o que temos.
O irrequieto petiz, longe de ficar decepcionado, ficou mais interessado. Afinal, que tipo de atrações poderia ter um circo tão pequeno, tão de lona rasgada, tão sem artistas e tão sem bichos?
– Senhor, quanto custa o ingresso para hoje à noite?
O velho artista, motorista, marceneiro, pintor e pai parece ter ficado feliz com a pergunta e tirou do bolso um cartão de plástico com um número, onde também estava escrito “Circo Leon Jaime, Permanente”.
– Isso aqui é para você. Com esse cartão você pode entrar de graça todas as noites, se quiser, se seus pais deixarem.
O moleque segurou aquele quadradinho na mão. O papo acabou e ele saiu agradecendo e correndo para mostrar aos pais o que tinha ganhado.
A senhora disse que sempre se impressionava com o brilho dos olhos das crianças, mas que aquele moleque não conseguia parar os seus sobre lugar algum. Parecia viver à procura de uma coisa que nunca aparecia.
Chegou a hora do espetáculo.
Houve fila. A aldeia não estava acostumada com essas coisas. Era longe de tudo.
A última atração que houve por ali antes do Leon Jaime foi um circo de touradas sem touros e sem toureiros. Sério, os bichos eram emprestados das fazendas e os toureiros eram os corajosos voluntários da plateia. Os pagantes, em sua carência de espetáculos, gastavam seu dinheiro para tomar chifradas e correr de vacas e bezerros. Touro mesmo, nada.
Voltemos ao Leon Jaime.
A casa estava cheia. As arquibancadas cumpriam seu papel, arqueando ao peso das gentes. Alguns tentavam entrar de graça pelas laterais, mas se havia uma parte da lona que não tinha buracos era ali. Fora a gritaria dos pagantes denunciando as tentativas.
O breu deu lugar a uma luz colorida, uma música começou a tocar e aqueles quatro mambembes entraram em suas fantasias, cada um portando um adereço. Estavam irreconhecíveis. O garoto, espremido entre adultos fumando cigarros de palha, entrou em transe.
A jovem Luana parecia uma deusa grega, conduzida por um velho contador de histórias de cartola e fraque. Vinha num vestido azul brilhante, calçada com sapatos de vidro. Leon parecia um mágico, dentro de um terno preto e sapatos de verniz, soltando pombas brancas das mangas.
À frente de todos vinha uma índia com um cocar enorme, fazendo malabarismos com tochas acesas. Do nada uma fumaça vermelha começou a encher o ambiente, o volume da música roubou os outros sons e as luzes acendiam o picadeiro, transformado numa escadaria gigante.
Não havia mais furos na lona e as arquibancadas se transformaram em poltronas de veludo. Um aroma floral e um vento fresco apareceram e tudo começou a brilhar a partir do chão, que não era mais de terra batida.
A trupe saiu de cena, o respeitável público explodiu em aplausos e em menos de um minuto tudo mudou.
Uma luz forte iluminou o palco e nele subiu um casal, com caras muito brancas de pasta d’água, lábios vermelhos, olhos delineados e perucas. Os dois iniciaram uma conversa. Suas vozes eram metálicas, potentes, não careciam de microfone, atingiam qualquer canto que a lona cobrisse.
Era um número cômico. Os dois diziam um texto rápido, de falas entrecortadas e marcações, gestos, expressões e movimentos, tudo perfeito. De quem era aquele texto? Quem os dirigiu? Como conseguiam nos fazer rir sem parar? Quem operava aquelas luzes?
Ali não estavam o motorista faz-tudo, nem a dona-de-casa professora de filhos. Eram dois espíritos a dar o texto e a fazer rir. O garoto acordou do transe com o barulho das palmas.
Terminada a performance, entra em cena, sob outras luzes, Luana. Vinha num vestido curto, descalça, cabelos soltos. Se já era linda à paisana, agora estava esplêndida. Brilhava mais que as luzes. Começou a cantar enquanto caminhava sobre cacos de vidro!
Sua voz era doce, afinada, a canção era triste, nunca ouvida por ninguém. Seus pés massacravam os cacos de vidro. Dava para ouvir as pisadas. Nenhum sangue.
Como se não fosse suficiente, Jaime entrou e pôs fogo no chão. Agora a jovem andava sobre chamas! Não se ouvia um pio na plateia. Terminada a música, a jovem saiu sob aplausos e assovios.
Muda-se a cor, troca-se a música. Entra Jaime, num bem cortado terno, empurrando uma caixa preta com detalhes prateados. Fez uma mesura, a tampa da caixa abriu-se sozinha, uma luz branca escapou lá de dentro trazendo pombinhas da mesma cor, que voaram sobre a assistência e retornaram à caixa sem cagar em ninguém.
Puxando uma varinha da manga, o mágico dirigiu-se à plateia e pediu a uma menina que a segurasse. Com um sopro, a varinha transformou-se num lenço de seda vermelha. Na mão da menina! Aplausos.
De repente, o mágico tira uma pequena caixa de dentro da maior. Abriu-a, mostrando que estava vazia. Pediu a um barrigudo da plateia que pegasse a caixa, conferisse e a passasse a outro, que deveria fazer o mesmo e assim ela circulou por todos até voltar a Jaime. Todos viram, não havia nada dentro. Quando chegou nas mãos do mago, este abriu a caixa e retirou de lá vários relógios, cada um de alguém da plateia. Aplausos.
Assim os números se sucederam, generosamente. O velho casal cantou, os jovens atiraram facas na tábua, os quatro se vestiram de palhaço.
Sob mais aplausos, aquelas quatro criaturas, apoiadas por adereços desgastados e sob uma lona tão furada que mais parecia um céu estrelado, despediram-se do público. As luzes coloridas foram se apagando, a música parou, a poeira da rua entrou, o breu da noite tomou conta do espaço e as pessoas saíram.
O garoto, ali na arquibancada, via a transformação do local como se estivesse saindo de um portal entre dimensões diferentes. E tudo voltou a ser como antes.
Não dormiu aquela noite. Durante a semana em que o circo permaneceu em frente à sua casa, não faltou a um só espetáculo. Tinha permanente. Em uma das noites os pais e irmãs foram. O pai, músico nas horas vagas, não cansava de se perguntar como aquelas pessoas conseguiam transformar tanta simplicidade num espetáculo tão sofisticado. Deve ter entrado em transe também.
Um dia o Leon Jaime se foi. O garoto, ao sair de casa, deparou-se com o terreno vazio. Foi até lá e ficou à procura de alguma coisa que pudesse guardar de lembrança, já que a permanente teve de ser devolvida.
Andando pelo local acabou por encontrar um caderninho. Na primeira página estava escrito em letras cursivas: “Segredos da Mágica do Circo, por Jaime”.
Fechou, com medo de ler. Abriu de novo e foi direto para a última página. Algo lhe dizia que iria encontrar alguma coisa boa ali. E leu:
“Se você achou esse caderno, saiba que ele é seu. Um dia eu o iria perder mesmo, de tão esquecido que sou. Se decidiu lê-lo e aprender os truques da magia do circo, saiba que isso não tem volta, que de bom só tem os aplausos, mas não sabemos ser outra coisa. Se desistiu de ler e veio direto para esta página, você escolheu ficar com os que precisam da ilusão dos filmes, novelas, livros, teatros e do circo, onde acontece tudo isso ao mesmo tempo, para aliviar a vida debaixo de uma lona, nova ou esburacada”.
A todos os meninos que seguem sendo meninos e insistem que a realidade pode ser o que quisermos.
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