Por Francisco Santana
Quer a minha admiração? Então, me ofereça tabule, kafta, charuto de repolho, homus, coalhada e molho de tahine. Quer ser meu amigo? Então me ofereça quibe podendo ser frito, assado ou cru. Diante de um prato de quibe eu perco a compostura, o regime e até, às vezes a educação. O gosto exagerado pelo quibe já me deu dor de cabeça, susto e risos no final. A história que vou lhes contar aconteceu na cidade de Ubá quando eu cursava Comunicação Social – jornalismo.
Era a última semana de junho de 2002. Fim das aulas do primeiro semestre da Faculdade de Jornalismo Governador Ozanan Coelho. Eu morava numa quitinete situada à Rua Antenor Machado, apartamento 303. Excelente frequência e boas notas me deram o direito de retornar à minha cidade natal, Barbacena, mais cedo. Sabendo da minha viagem ganhei da mãe de uma colega uma travessa de quibe cru e outra de quibe assado, para virem comigo a Barbacena. Despedi-me dos colegas e professores desejando a eles boas férias e até agosto, se Deus quiser. A grande maioria pediu-me cuidado redobrado na estrada, que além das curvas e má conservação, estava escorregadia pelas constantes chuvas que caíam na região. No dia anterior revisei o carro por prevenção. Pela manhã me aprontei para deixar Ubá por trinta e poucos dias. Dei uma arrumada na quitinete e foi aí que cometi o primeiro grande erro: esqueci de me despedir das vizinhas do 3º andar e dizer-lhes que estaria fora por motivo de férias. Desliguei o registro elétrico geral e deixei a porta da geladeira semi-aberta.
Eram cinco horas da manhã e eu já estava na estrada. Viagem tranquila, estrada pouco movimentada, e mais um semestre vencido. Mal sabia eu a grande confusão aprontada por inexperiência ou ignorância. Passados alguns dias, fiquei sabendo que um mau cheiro tomou conta do prédio. Por ter um bambuzal nos fundos, pensara-se que alguém jogara ali algum animal morto que pudesse estar em decomposição. A síndica foi chamada e começaram a perceber que a fedentina estava no apartamento de nº 303. Ela e uma vizinha começaram a suspeitar que o Santana estivesse morto dentro da sua quitinete, morando sozinho, coitado! As suspeitas iam aumentando na proporção do mau cheiro exalado. Cadê o Santana que não aparece? Ele sumiu sem deixar avisos, diziam todas.
Ligaram para funcionários da faculdade que negaram fornecer meu telefone em Barbacena, alegando ética. Contataram com alguns alunos que confirmaram ausências do Santana nas aulas há vários dias. As suspeitas iam se confirmando. Pensaram em arrombar a porta, chamar a polícia, Corpo de Bombeiros. Uma vizinha teve uma idéia genial, iriam à rua, localizariam um menino franzino para entrar na quitinete pelo vão da janela. Um policial morador do 2º andar foi à Praça Guido Marlière, frente à minha morada e localizou um. Começou então a busca pelo corpo do Santana. Ergueram o menino que a toda hora era questionado se via alguma coisa. Ele quebrou o silêncio e disse que pela janela enxergava o quarto, uma cama arrumada, um guarda roupa, e que o defunto poderia estar na cozinha ou na sala, pois o mau cheiro vinha lá de dentro. O menino já se encontrava no interior da casa. Foi à sala e disse que via um sofá, dois quadros na parede, aparelho de som, televisão e um armário cheio de livros. Apreensiva a vizinha perguntava: “encontrou o Santana?”. Para visitar a casa toda, só faltavam a cozinha, o banheiro e um pequeno cômodo de despejo. Ele olhou os dois cômodos e gritou: “aqui não tem nenhum defunto!”.
- Se não tem defunto que mau cheiro é esse que está saindo da casa dele?
- Xiiiiii!!!! O fedô está vindo de dentro da geladeira. Espera! O chão está cheio de sangue!
- Ai meu Deus! Será que fatiaram o Santana e colocaram os pedaços na geladeira? Pobre Santana, tão educado e prestativo.
- Não é sangue não! É coca cola com suco de uva que explodiram dentro da geladeira. Dentro dela tem uma “porrada” de coisas estragadas, yogurte estourado e mofado, pizza verde e mofada, queijo da cor da bandeira do Brasil verde/amarelo, maçãs pretas, melancia desmanchando, feijão verde, arroz azulado, e a carne do congelador podre. Puta que pariu, os quibes das tigelas estão cheio de larvas, Credo! Que trem nojento! A alface está amarela, laranjas podres e a geladeira toda mofada por dentro.
- Eu vou lhe dar pela janela um saco grande e você pega toda essa bagunça e coloca dentro dele. Depois me passe pelos fundos para jogar fora e ver se termina essa fedentina. Dizia a vizinha.
Depois de uma limpeza geral dos materiais e de uma boa limpeza geral, o bom cheiro voltou a reinar no famoso apartamento 303 da Rua Antenor Machado em Ubá/MG. Quando voltei para o segundo semestre levei broncas e muitos conselhos dos moradores. Até hoje eu rio da história. A coisa foi tão séria que a partir desse acontecimento, toda sexta-feira uma vizinha me perguntava se eu iria viajar e as demais ao encontrarem comigo na escada ou corredor, faziam sempre a mesma pergunta:
– Vai viajar, Senhor Santana? Se for, não se esqueça de me avisar ou então deixe a chave com alguém do prédio. Lição aprendida. Gastei muitas horas para limpar a geladeira e dar explicações a muita gente que ficou sabendo da história. O policial me disse: “Santana, você é doido mesmo!”.
Numa tarde passando pela Praça Guido Marlière um menino franzino veio a mim e perguntou: “O senhor é o defunto daquele prédio?”. Sorrimos e ele educadamente apertou minha mão e disse: “Juízo hein!” e cada um seguiu seu rumo.
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