Pauta em prosa, verso em trova (volume 66)

JGHeleno*

 

 

Vou convidar você para ouvir a canção abaixo de Gilberto Gil. Muitos não consideram como literatura as letras de músicas. Eu não vejo nenhum problema nisso. Até porque na antiguidade, não havia separação entre melodia e letra. A separação que nós vemos hoje surgiu séculos depois. Na canção moderna, o ritmo e a melodia são tão envolventes que nos levam, frequentemente, a desconsiderar a letra, quando muitas vezes, a letra é mais rica de sentido do que a própria melodia. O texto transcrito abaixo é a letra da música “Andar com fé”, donde eu excluí as frases repetidas, geralmente exigidas pela melodia, pelo compasso e por outros elementos específicos da música. Mesmo que você seja um desses aficionados pela música atual, dê uma passagem nas outras canções desse cantor. Não vai se arrepender.

 

Andar Com Fé

Gilberto Gil

 

Andar com fé eu vou

Que a fé não costuma faiá

Andar com fé eu vou

Que a fé não costuma faiá

 

Que a fé tá na mulher

A fé tá na cobra coral

Oh, num pedaço de pão

 

A fé tá na maré

Na lâmina de um punhal

Oh, na luz, na escuridão

 

A fé tá na manhã

A fé tá no anoitecer

Oh, no calor do verão

 

A fé tá viva e sã

A fé também tá pra morrer

Oh, triste na solidão

 

Certo ou errado até

A fé vai onde quer que eu vá

Oh, a pé ou de avião

 

Mesmo a quem não tem fé

A fé costuma acompanhar

Oh, pelo sim, pelo não.

 

O assunto principal é a fé, desde o título “Andar com fé”. Não me parece tratar-se da fé religiosa, a não ser na última estrofe “ Mesmo a quem não tem fé, a fé costuma acompanhar. Pelo sim, pelo não”. Isso porque todos os objetos de fé a que a letra se refere se justificam, quase o tempo todo, como elementos palpáveis da vida cotidiana, que podem dar sentido à vida ou às coisas da vida: a mulher, o pão, a maré, a luz, a escuridão, a manhã, o anoitecer, o verão, etc. E a fé não deixa de nos acompanhar: “A fé vai aonde quer que eu vá”.

O artista não costuma entregar o texto com a trilha acabada e pronta para o sentido. Ele sempre deixa uma ponta solta como provocação ao fruidor da obra, espaço para que o leitor/ouvinte coloque o seu próprio e exclusivo sentido. Nesta canção, por exemplo, temos nessa condição a cobra coral, o punhal. Há momentos também em que o artista assusta o leitor/ouvinte, quebrando sua expectativa, como em “…eu vá a pé ou de avião”, invocando coisas inesperadas que fogem ao contexto da obra.

O elemento racional está na linguagem. A linguagem não se esgota aí, mas ela tem seu componente racional. O poema é uma peça artística. Tem uma insinuação religiosa (campo do numinoso). Fala do convívio, quando diz: A fé tá viva e sã mas está para morrer na solidão. A solidão, ao romper o convívio, aponta para a morte.

 

Como tudo termina em trova:

 

 

Coragem com muita fé

parece quase afoiteza

mas se sabe que não é

senão sinal de certeza.

 

*AJL. ABL, UBT

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