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Pauta em prosa, verso em trova (volume 91)

Por JGHeleno*

RASTRO DE MULHERES

Acho que falava com minha mãe. Sério. Não sei se ela ouvia, pois ela já morava no silêncio eterno. Há cerca de 4 anos ela partiu. Mas deixou uma foto linda como de uma dama nobre, num trono-de-rodas. Sim, já estava bem idosa, com seus 96 anos, e desgastada naturalmente. Mas linda que só vendo. Sim, a beleza interna ela nunca perdeu. Beleza, Isso são coisas de mãe. Não estava naquele dia menos linda. Era a última festa de que participaria. Nós não sabíamos, nem ela naquela comemoração de seus 96 anos, que não chegaria aos 97, pois ela partiria antes.
Perto era possível ver a beleza de outra mulher. Mãe também. Não uma representante da beleza obrigatória que se exige hoje…Empurrava aquele trono de rodas, pois era uma das cuidadoras da minha. Ela certamente se inspirou na beleza jovem de sua filha para vestir minha mãe. Beleza de mulher é assim: é um capital sem fim. Basta uma volta ao cabeleireiro ou manicure que toda formosura lhe renasce.
E essa beleza que a mulher ativa da cadeira roubou de sua jovem filha para por na minha mãe era uma beleza viva, saudável, sorridente, que parecia eterna. E ela via isso. Ela quem? Minha mãe, é claro; e a mulher ativa da cadeira também.
Saí para a livraria. No caminho, alterei a rota. Em vez de um livreiro rescendendo a papel impresso recortado, cheirando a revisores e resenhas, entrei num sebo. Os livros ali têm histórias – pensei – como nossas mães que, mesmo depois da vida, continuam a nos contá-las. Não errei. “Uma noite no Raffa’s”. O livro de Ivanir Yazbeck parece que me esperava à porta. De dentro dele, ouvi sair o som da cidade noturna, vi quadris que se moviam ao ritmo picadinho daquela casa noturna da década de 60. Era tão real que senti o respirar dos músicos e os perfumes misturados nos sorrisos de alegria dos corpos e rostos a se tocarem. Tive que esperar a pausa da orquestra, então perguntei:
– À venda? (Idiota que fui. Estava no sebo para quê?)
– Sim, pertenceu a minha mãe, frequentadora do Raffa’s. Respondeu a vendedora, já mo entregando.
– Escreve isso para mim. Essa recordação para fazer parte deste livro.
Ela abriu o volume. E fez uma espécie de dedicatória póstuma. Pensando depois, vi que ela podia dedicá-lo sim. Ela podia muito mais, até ter nascido fruto daqueles bailes. Contando depois a um amigo, ele me disse: meus pais também se conheceram no Raffa’s.
Já quase na porta, uma capa vermelha piscou pra mim. Outro livro. O assunto não me lembra. A capa muito bem conservada. Autora: uma mulher. Apanhei-o também. Dificilmente se compra um livro só. Em livrarias de sebo, a gente não compra livros; são eles, os livros que, nas mais das vezes, nos procuram e nos acham. Em seu abandono, se nota logo que já tiveram donos, e não mais se acostumam à solidão. No sebo, a gente é tutor, e não leitor..
Ao folheá-lo, libertei de dentro outra mulher. Esta, sisuda, metódica, estudiosa. Linda também, mesmo sem eu tê-la visto, sem saber quem é. Um livro é como um cão fiel, só abandona o dono pela morte deste. Presumo, pois, ser este o caso, e por isso, o abandono do livro ali à espera de novo dono. As passagens da antiga dona, seus rastros, no entanto estão muito bem sinalizados..
Impecavelmente marcado a caneta se apresentava o livro, com sublinhas nas partes que mais lhe afetavam enquanto lia. Tudo riscado a régua. Esta é tão meticulosa, que mesmo na sua ausência provável. me diz seu endereço, escrito numa ficha esquecida dentro do livro. Ali está seu nome, telefone, rua, bairro, número, CEP. À época, ela tinha 32 anos. Era professora. E Comprou o livro em abril de 1985, nesta mesma cidade de Juiz de Fora. (JGHeleno, 7/3/2023).

Para terminar em trova:

Fragmentado como for
– vários livros, três mulheres –
quem funde o texto é o leitor,
mesmo que assim não o esperes.

Pedra de luz ou diamante
nossa mãe, farol divino,
é joia de todo instante
do grande e do pequenino.
*ABL, AJL, LEIAJF, UBT

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