Pauta em prosa, verso em trova (volume 65)

JGHeleno*

O COBRADOR (II)

Lembrou-se ainda do livro que cativou alguns leitores. De sua autoria, publicado havia bastante tempo, não conseguira repetir-lhe o êxito. Tinha, em contrário, algum remorso, pois a história era a de um amigo de universidade, estudante de engenharia, que tivera o fracasso anunciado depois de uns furos indevidos no cartão de respostas do computador (antigamente era assim). Coube ao futuro cobrador a tarefa de redigir a biografia do rapaz. Um meio-sucesso veio junto com a publicação, mas o conteúdo era sombrio.

Saiu, como acontecia às vezes, bem-sucedido naquele dia de cobrança. Evitava lembrar os argumentos, tanto os dele quanto os do outro: uns profissionalmente falsos, os outros humanamente meio verdadeiros. Agora tinha pressa. Mergulhar para se afogar nas  mídias diárias e embriagar-se de ilusões.  Até se lançar de ponta no Linkedin. A espera de um milagre o empurrava de anúncio em anúncio, até seus olhos caírem como esfera dentro de um poço de eco fundo. Links que geram links, que geram links. E ele se aprofundaria como quem se lança no redemoinho, acreditando que nadar é sempre possível, mesmo que dentro de um funil de rio. Os redemoinhos lhe eram familiares na infância, de alguém criado à beira d’água. O adulto tem a ousadia que  o menino não tinha, ele se lembra. Ele sente que agora tem  o treino e a coragem de atirar-se com avidez num deles, certo de que no fim de um pode sempre haver outro redemoinho, até que no último certamente lhe surgirão as águas planas. (JGHeleno)

Como tudo termina em prosa:

Esta vida é um moinho

é o que dizia Cartola

dá ou nega seu carinho

às vezes salva, ou esfola.

• ABL, AJL, UBT

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