JGHeleno*
A TELHA PARTIDA
Seria apenas mais uma daquelas noites tétricas, como era comum. Escuridão, assobio de vento nas telhas. De vez em quando um estrondo no céu seguido daquele clarão a socar casa a dentro a projeção das árvores do entorno. Naquela noite, a tempestade d’água fora pouco além de uns pingos, e tudo voltou ao silêncio parado daquela grota, onde o pai havia construído a casa. E ali vivia há pouco mais de um ano. Tempo suficiente para o menino conhecer João, boêmio frequentador do boteco a meio quilômetro de distância. Lá, sim, um lugar descampado, visível de qualquer ponto do “córrego”. O João era mais ou menos malungo do pai, e se encantou com a florescência do menino, talvez ao ver nele o filho que não tinha. Seus caminhos bifurcaram. O pai tomou mulher e pôs o menino no mundo, enquanto João se aperfeiçoou na boemia. Era um perfil versátil: nas mesas de bar, provedor de todos os bebuns que por ali passassem; lírico cantador, se com ele estivesse o sanfoneiro Vicente. Nesse dia, o Vicente não estava; no lugar, algumas garrafas de pinga sobre o balcão, e uns andarilhos patrocinados por ele. Era a plateia do diálogo que se seguiu:
Pai: – Este é o meu menino. E apontou o guri, conduzindo os olhares dos outros. – O nome dele é João, acrescentou, apontando o ex-companheiro, mas sem tirar os olhos do filho.
O João, no entanto, tinha um outro lado, com que as pessoas não brincavam. Era morador brabo da boemia, que, para uma criança nada significava. E esta foi logo lhe atribuindo um apelido: “João Teneném”. O nome de um passarinho inofensivo era o que João mais precisava de ouvir na vida. E a espontaneidade e o inocente do menino o encantou. E a metamorfose do boêmio também a este comoveu: aquela descida súbita de sua plataforma de rico cachaceiro e valentão poeta; de seu pedestal de patrocinador, até a pureza do filho de um amigo, pobre e pai, deu ao menino algo que este também nunca havia experimentado: um abraço cheirando a pinga, mas de uma afetividade jamais sentida.
Foi dele que o moleque se lembrou naquela noite fatídica, depois de tudo amainado, quando uma telha se desprendeu do telhada se espatifando ruidosamente no assoalho: era uma hora da manhã. Soube-se depois que, naquele exato minuto, João era assassinado por seu amigo Vicente, lá no tal boteco do escampado. E a telha quebrada, ninguém jamais a encontrou.
Poderíamos aqui desvendar todo compartilhamento de sentidos entre nossos universos a partir, especialmente, do mistério dos horários coincidentes e da própria telha sem corpo que se espatifara no assoalho. Isso toca questões que povoam os anseios e os temores de muitos de nós, quiçá, de todos.
No entanto, vou falar aqui do processo criativo. Da criação de sentido. O grande veículo, se não o único, é a linguagem. Quando se pensa que o sentido não nasce da linguagem, é mister acreditar que ele, no mínimo, se expressa nela.
O menino da história fora apresentado por seu pai ao João, um adulto descompromissado, boêmio, poderoso, brabo, mas poeta. O menino desconheceu tudo isso e o desafiou pela linguagem, colocando-lhe um apelido. Quem ousaria isso, senão um menino? Chamou-o de João Teneném. Podia tê-lo chamado de “João de Barro”, “João Bobo” que também são nomes de aves que o garoto conhecia. Intuitivamente, entretanto, chamou de Te-neném o amigo do pai, que nunca tivera um neném.
A trova que segue vai falar de sentimentos que brotam ou buscam o convívio do amor paterno, filial, da admiração, da saudade, da amizade, do amor boêmio, do desejo de convívio eterno.
Como tudo termina em trova:
Gente não sente o que quer,
sente e não pede licença
como a flor do bem-me-quer
que viça, se há bem-querença.
*AJL, ABL, UBT-Barbacena
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