Por JGHeleno*
O local seguinte a que pretendia chegar já lhe era de há muito conhecido. Da pequena baixada onde se localizava a casa de apoio ele empreendeu a subida até o barraco de ferramentas. Uma grande árvore se estendia paralela ao trilho. Não atrapalhou a passagem porque em vez de uma copa espalhada pelo chão, havia apenas fragmentos secos soltados no processo de queda da árvore. Ela era extensa e estava seca, devia ter caído há poucos dias, porque os pontos de fratura estavam brancos com sua lignina à mostra. A árvore, um grande eucalipto, quando caiu, ficou apenas a poucos metros da casa de apoio, que facilmente poderia ter sido atingida.
Ele teve receio de não alcançar o cômodo das ferramentas quando viu algumas vacas holandesas a vir na sua direção partindo dos fundos da casa branca que lhe barrava à vista a contemplação de um horizonte maior. Podiam estar famintas e movidas pela esperança de alguma ração, como podiam também estar reagindo à invasão por um estranho do espaço delas. Ele se tranquilizou, no entanto, ao perceber que havia tempo suficiente para entrar no barraco e se livrar talvez de um ataque.
A chave estava na porta, até oscilante por causa do vento que soprava naquele momento. Isso aliviava sua preocupação, pois quando viu as vacas, a primeira ideia que lhe veio à cabeça foi a possibilidade de ter esquecido a chave do barraco. Mato encobria, não só o chaveiro, mas parte da porta. Antes de pôr a mão para torcer a chave, ouviu que alguém o chamou pelo apelido com que era tratado quando criança. Era voz de sua irmã.
Trouxe esse pequeno texto para ilustrar o processo criativo. Este, apenas um, entre muitos. Trata-se da transcrição de um sonho, que é uma narrativa não intencional. Ele reúne elementos da memória de quem sonha. Espontaneamente, esses elementos se articulam – nem sempre de forma lógica – e, reunidos numa narrativa, instauram algum sentido. Os fragmentos da memória, reunidos, criam uma narrativa única, só vivida naquele sonho. A casa de apoio e o cômodo existem em Brumadinho, bem como a encosta que os separa. A árvore caída é apenas a imagem de alguma cena já vista pelo sonhador, ou criada pela imaginação a partir da reunião de pedaços de sua experiência. No cenário básico do sonho não existe nem a possibilidade daquela árvore, embora sua existência ali não seja inverossímil. A casa branca, a barrar-lhe o horizonte, jamais poderia existir ali. O mato que esconde a porta do barraco é apenas uma possibilidade, mas não existe no momento do sonho. As vacas também foram buscadas no banco de imagens da memória do sonhador. A irmã, que o chama pelo apelido, não mora naquelas imediações, e sua voz partiu de um ponto indefinido.
O sonho, como a redação de um texto ficcional são processos de criação de sentido, até semelhantes. Só que o sonho é espontâneo, e a ficção é intencional. Na criação ficcional intencional, o escritor tem uma intenção, há objetivos a alcançar. Parte do sentido que ele quer comunicar é fruto de um projeto, por isso, ele burila seu texto, controlando a forma e a direção que quer lhe dar. Apesar disso, parte do sentido do texto ficcional fica oculto até mesmo para o seu autor, da mesma forma como acontece no sonho. Por essa razão, o bom leitor é também um artista que cria ou “descobre” outros sentidos no texto do escritor, muitas vezes causando surpresa ao próprio autor. O resumo da história sonhada, que fiz acima, é apenas a camada superficial da história. A camada interior, aquela que um competente analista pode desvendar, está presente no texto, mas nem seu autor muitas vezes a identifica. Tanto no sonho como no texto ficcional ou poético, os autores reúnem coisas vistas, coisas lembradas, coisas inventadas, coisas intuídas, e as articulam numa narrativa. O que na memória parecia peças dispersas de um mosaico, se articula e cria um sentido linear, que enquanto revela sua linearidade, oculta um sentido a ser escavado pelo leitor.
A experiência mostra que muitas vezes o sonho e o processo artístico de criação se imbricam e se ajudam mutuamente. Mas isto é uma outra questão. E como tudo termina mesmo é em trova:
É ou não também um sonho
literário o poetar?
Questão essa, que me ponho
quando eu ouso interpretar. (JGHeleno)
- Da AJL, A. BARB. LETRAS, UBT Barbacena.
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