Mitos e verdades sobre a origem do termo “gandula” no futebol brasileiro

A opinião de Helcio Ribeiro Campos

A profissão de gandula foi oficializada no Brasil na década de 1940, mas a origem do termo é anterior e traz um erro histórico tão repetido que se tornou “verdade”. Esse erro envolve o jogador argentino Bernardo Gandulla, que defendeu o Vasco da Gama em 1939.

No passado, os gandulas eram sempre homens, ao contrário da atualidade. Isso influenciou em suas denominações. O termo gandula é usado no Brasil, enquanto outros idiomas e seus países têm suas próprias designações para aqueles que pegam as bolas que saem do campo de jogo. Por exemplo:  Portugal (apanha-bolas), Argentina (alcanzapelotas), Paraguai (pasapelotas), Equador (pasa bolas), Alemanha (balljunge) e França (ramasseur de balles).

A mentira contada mil vezes no Brasil (e que se tornou “verdade”) diz que o argentino Gandulla não era muito habilidoso e que, por isso, ficava na reserva. Tentando mostrar empenho e por ser voluntarioso, pegava as bolas e as devolvia com presteza e rapidez para o campo.

A lenda foi tão repetida que chegou a figurar em um conhecido dicionário brasileiro, o Houaiss, ao dar o significado do vocábulo “gandula”.

A primeira coisa a se desconfiar vem do fato de se atribuir pouca habilidade a um jogador da Seleção Argentina. E mais: o interesse cruz-maltino veio depois de jogos realizados aqui no Brasil, mas o jogador não atuou e fora observado durante seus treinos em São Januário.

Foi assim que o ponteiro Gandulla trocou o Ferro Carril Oeste (de Buenos Aires) pelo Vasco da Gama, chegando ao Brasil em 1939, após esperar um imbróglio trabalhista ser resolvido.

Foto 2 – Pedro Novaes (presidente do Vasco) e Gandulla durante assinatura do contrato – 1939. Fonte: A Noite, 7 mar. 1939, p. 5.

A palavra gandula poderia ser uma referência a “garoto, que era gandulo, vadio, tratante. Gandulo e gandula já era utilizado para outras coisas, e o termo gandula já existia no cenário esportivo carioca”, explica Walmer Santana, do Centro de Memória do Vasco da Gama.

Duas grandes coincidências do caso Gandulla ajudaram a espalhar essa história falsa da origem do termo “gandula”:

1ª) A Liga de Futebol do Rio de Janeiro (LFRJ) oficializou os gandulas em 1940, um ano depois da presença do argentino Gandulla na cidade. “[…] como o nome Gandulla, através do Vasco, se espalhou Brasil afora, foi perfeito para criar esse romance”, assevera Walmer Peres.

A deliberação da LFRJ:

“Que se sugira aos clubes filiados, para maior rapidez do jogo, a conveniencia de destacarem, como no tenis, garotos para apanharem as bolas nos fundos dos campos” (Diario de Noticias, Rio de Janeiro, 25 de maio de 1940, p. 12).

2ª) Segundo o pesquisador Max Gehringer, do Memofut, Gandulla realmente gostava de pegar a bola com as mãos, mas era “[…] para reclamar com o juiz.

Uma notícia de jornal resume essas duas ideias:

“A Gazeta”, de São Paulo, publicou: “Os Gandulas” – A Liga Carioca pretende oficializar os “gandulas”. São os meninos que, na Europa, ficam atrás das metas para apanhar a bola e que aqui tambem foram colocados no Estadio do Pacaembú, quando do “Toneio Relâmpago”. A denominação de “gandula” nasceu das atitudes do jogador argentino do mesmo nome, cuja passagem, pelo Vasco, se tornou notoria por ir apanhar todas as bolas que saiam e, pondo o couro debaixo dos braços, dirigia-se ao árbitro para reclamar qualquer coisa, com ou sem motivo…Esses cariocas…” O confrade paulista está equivocado. O termo “gandula” tem mais de 20 anos de uso no Rio e não foi sugerido por nenhum jogador desse nome. Naturalmente, o colega pretendeu romancear… Sem a menor idéia de imitar os europeus, os cariocas se utilizavam dos “gandulas”, principalmente nos campos antigos, quando eram circundados por muros baixos, para terem de volta a bola, sem grande perda de tempo, sempre que alcançava a rua. Ignoro como nasceu a palavra “grandula”, mas posso garantir não ser exata a origem assinalada pelo citado jornal. Alem disso, o jogador Gandula não se tornou conhecido pela atitude que lhe foi atribuida […] (Diario de Noticias, 30 de maio de 1940, p. 12 – Grifos meus).

Gehringer aponta a coluna “Pergunte ao João”, do Jornal do Brasil, como meio de propagação da “mentira do gandula”. Isso se deu na década de 1960, quando um leitor indagou sobre a origem do termo gandula.

A coluna recorreu ao ex-colega de Gandulla no Vasco, Alfredo II, e ao Jornal dos Sports (JS), a mais popular publicação esportiva carioca daqueles tempos. Alfredo desmentiu a lenda, mas o JS a contou. Resultado: a lenda foi espalhada e é até hoje tomada como verídica.

Foto 3 – Bernardo Gandulla não deu nome à função de gandula, como reza a lenda popular. Fonte: O Globo Esportivo, 11 nov. 1939, p. 5.

Bernardo Gandulla (1 mar. 1916-7 jul. 1999) saiu do Vasco e foi para o Boca Juniors. Atuou também no Manchester City, dentre outros clubes. Foi técnico do próprio Boca nos anos 1950.

NOTA DA REDAÇÃO: Helcio Ribeiro Campos é autor de publicações sobre Futebol e Geografia; doutor em Geografia pela USP; professor do IF Barbacena.

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