Há 50 anos começava a Guerra do Futebol
6 mil mortos e até servir comida com fezes para torcedores rivais compõem esta história
A Guerra do Futebol (ou Guerra das 100 Horas) se desenvolveu em julho de 1969, como desdobramento de 3 partidas entre El Salvador e Honduras válidas pelas eliminatórias da Copa do Mundo de 1970, no México.
A expressão Guerra do Futebol foi cunhada pelo jornalista polonês Ryszard Kapuscinski, que cobriu o conflito e escreveu um livro com o mesmo nome. Na realidade, a guerra não foi causada pelo futebol, mas dele veio o estopim para seu início.
Foto 2 – O livro de Kapuscinski na versão em inglês (Fonte: FORTES, 2016)
Os países da América Central tiveram um conflito armado em sua zona de fronteira, que durou apenas 4 dias (daí “Guerra das 100 Horas”), deixando cerca de “6.000 mortos, mais de 12.000 feridos, [a maioria civis]. Cinquenta mil pessoas perderam suas casas. Muitas vilas foram destruídas” (KAPUSCINSKI, 1991, p. 182).
El Salvador e Honduras já apresentavam animosidades anteriores aos jogos de suas seleções em 1969, mas estes potencializaram as rivalidades. Eles se enfrentaram pelas semi-finais e o vencedor pegaria Estados Unidos ou Haiti para saber quem estaria na Copa do México, 1970.
As 2 primeiras partidas em questão foram:
– 1ª) 8 jun. 1969, em Tegucigalpa: Honduras 1 x 0 El Salvador
Houve muita briga dentro e fora do campo. Os salvadorenhos foram hostilizados, tendo o hotel cercado: “As pessoas […] jogaram pedras nas janelas, soltaram fogos de artifício e fizeram panelaço”, contam Schimidt e Gomes (2014).
O suicídio da estudante Ana Bolaños, 18 anos, após a derrota de El Salvador a transformou em mártir e símbolo nacional, elevando o nível de revolta. Seu enterro foi acompanhado pelo presidente do país e jogadores da seleção. Houve transmissão ao vivo pela TV. “Cartazes com imagens da mártir e promessas de vingança estavam por toda parte, poucos dias antes do jogo de volta”, conta José Eduardo de Carvalho (2012, p. 7).
– 2ª) 15 jun. 1969, em San Salvador: El Salvador 3 x 0 Honduras
As brigas se intensificaram e até assassinatos aconteceram, além da desordem nas ruas.
Um caso, no mínimo inusitado, chamou a atenção: funcionários dos hotéis chegaram a servir comida estragada ou até com fezes para os torcedores hondurenhos, relatou Gerson Gómez, correspondente do jornal El Heraldo.
As tensões reveladas no futebol eram, a rigor, originadas pela presença de migrantes salvadorenhos em Honduras vitimados por sentimentos xenófobos. “Submetidos à ordem social econômica imposta por latifundiários, como a imposta pela norte-americana United Fruit Company, cerca de 300 mil trabalhadores de El Salvador subsistiam em situação precária no país vizinho” (CARVALHO, 2012, p. 7).
Por isso, enquanto os jogos pelas eliminatórias da Copa de 70 aconteciam, muitos migrantes voltavam para seus países, levando a uma concentração armada por ambos países na zona de fronteira.
Com uma vitória para cada lado (não havia vantagem pelo placar), houve a necessidade de um jogo-desempate, o qual foi marcado para o México:
– 3ª partida) 27 junho 1969, na Cidade do México: El Salvador 3 x 2 Honduras
“Os torcedores hondurenhos foram colocados de um lado do estádio, os salvadorenhos do outro, e no meio sentaram-se 5.000 policiais mexicanos armados com grossos cacetetes” (KAPUSCINSKI, 1991, p. 184).
Foto 3 – Notícia jornalística anuncia 3º jogo e possíveis conflitos (Fonte: SCHIMIDT; GOMES, 2014)
Poucas horas antes da partida o governo de El Salvador anunciou a quebra das relações diplomáticas com Honduras e, apesar da vitória no jogo-desempate, partiu para o primeiro ataque militar.
O primeiro dia de enfrentamento entre as forças armadas se deu em 14 de julho e o último no dia 18, em razão de um consenso obtido por meio da OEA – a Organização dos Estados Americanos, com uma trégua assinada pelos contendores. Contudo, a assinatura de um tratado de paz em definitivo só veio mais de 10 anos depois.
Voltando ao campo de jogo, a única vaga destinada para os países da CONCAF na Copa de 1970 ficou com El Salvador. Para tal, bateu o Haiti também em uma série de 3 partidas.
Na Copa, El Salvador saiu na primeira fase, tendo derrotas para Bélgica (3 a 0), México (4 a 0) e União Soviética (2 a 0).
As atuais relações entre El Salvador e Honduras são boas, embora ainda existam esporádicos conflitos nas áreas limítrofes entre os dois países, se já não bastassem os elevadíssimos índices de homicídios em cada um deles. No futebol, a rivalidade entre ambos também arrefeceu.
Bibliografia
CARVALHO, José Eduardo de. Geopolítica: 150 anos de futebol. São Paulo: SESI, 2012.
FORTES, Rafael. Kapuscinski e a “Guerra do Futebol”. História(s) do Sport, 27 out. 2016. Disponível em https://historiadoesporte.wordpress.com/category/historia-do-esporte/politica/
KAPUSCINSKI, Ryszard. The Soccer War. New York: Alfred A. Knopf, 1991.
RUFFATO, Luiz. Geopolítica da Copa (parte 4): Guerra do Futebol. Carta Capital, s/d. Disponível em: http://chuteirafc.cartacapital.com.br/luiz-ruffato-geopolitica-da-copa-parte-4-guerra-do-futebol/
SCHIMIDT, Felipe; GOMES, Fred. Guerra do Futebol: fezes na comida e violência geraram rixa em Honduras. Globo Esporte, 19 jun. 2014. Disponível em: http://globoesporte.globo.com/futebol/selecoes/honduras/noticia/2014/06/guerra-do-futebol-fezes-na-comida-e-violencia-geraram-rixa-em-honduras.html
NOTA DA REDAÇÃO – Helcio Ribeiro Campos é (co)autor de publicações sobre Geografia e Futebol, como Identidade: reconhecendo alguns significados e territórios e Onze: Futebol e Ciências Humanas; mestre e doutor em Geografia Humana pela USP; escrevo o Blog Futebol, Cultura e Geografia; professor do IF Barbacena.