Saindo do óbvio ou das dúvidas mais comuns sobre inventário e Direito das Sucessões (como por exemplo a velha questão: “repondo pelas dívidas do falecido? R.: Sim, até o limite que lhe aproveite a herança!”), eis que semana passada uma colega me questionou sobre um assunto pouco recorrente.
A cliente da minha amiga advogada é viúva de militar e seu falecido esposo tinha duas pistolas registradas em seu nome (não eram armas da corporação, as quais simplesmente seriam devolvidas ao Estado, proprietário do armamento). Então pairou a hipótese: é possível herdar as armas de fogo?
Pergunta totalmente plausível! Diferente de um imóvel no qual a transferência de propriedade se dá por escritura, o armamento possui legislação própria, bem mais específica que os artigos que geralmente utilizamos do Código Civil para montar uma abertura de sucessões.
Assim, alguns desdobramentos podem surgir quando alguém falece e deixar arma de fogo como patrimônio pessoal: seja para quando algum dos herdeiros tem interesse em transferir a arma para o seu nome, seja para quando nenhum dos sucessores desejar transferir o armamento para sua titularidade.
Enfim, nem sempre querer é poder! E, para “herdar”, ou melhor transferir o engenho mecânico bélico (gastei meu português agora!), é necessário seguir o que ensina a própria Polícia Federal:
Um ente da família faleceu e deixou uma arma de fogo. Como proceder?
Caso a arma de fogo não tenha registro ou tenha registro estadual (não emitido pela Polícia Federal) ela deverá ser entregue na Campanha do Desarmamento. Caso a arma já possua registro emitido pela Polícia Federal, aplica-se o disposto no art. 47 do Decreto 9.847/19:
“Na hipótese de falecimento ou interdição do proprietário de arma de fogo, o administrador da herança ou o curador, conforme o caso, providenciará a transferência da propriedade da arma, por meio de alvará judicial ou de autorização firmada por todos os herdeiros, desde que sejam maiores de idade e capazes, observado o disposto no art. 12”.
https://www.gov.br/pf/pt-br/assuntos/armas/duvidas-frequentes/um-ente-da-familia-faleceu-e-deixou-uma-arma-de-fogo-como-proceder
Observa-se portanto, a concordância dos demais sucessores (autorização) e a figura do alvará judicial como regra neste caso.
Todavia, há um fator interessante que merece destaque na prática forense: além do interessado ser plenamente capaz (com 25 anos de idade e não se encontrar interditado), é pacífico que além da capacidade psicológica e técnica, deverá ainda comprovar a NECESSIDADE de uso, conforme precedente do TRF2 ao negar provimento à recurso de um herdeiro que pretendia a transferência de uma bereta para sua titularidade:
“o impetrante não comprovou a efetiva necessidade das armas de fogo para si, sendo que o artigo 67, do Decreto 5.123/2004, é expresso no sentido de que, mesmo no caso de herança, devem ser observadas as disposições contidas no artigo 12, do referido Decreto, pelo herdeiro ou interessado na aquisição, o que não ocorreu na hipótese dos autos. Vale frisar, ainda, que o ato administrativo que autoriza a aquisição de arma de fogo possui natureza precária, revestido de conteúdo discricionário. Portanto, o mero preenchimento dos requisitos formais não implica a compulsória autorização da Polícia Federal, podendo esta examinar fatos e circunstâncias justificadoras do pedido.”
Proc.: 0126160-85.2015.4.02.5001
A decisão ainda frisou o Estatuto do Desarmamento, Lei 10.826/2006 e o referendo popular de outubro de 2005.
Por outro lado, caso nenhum dos sucessores tenha interesse em transferir o bacamarte para sua titularidade, o Decreto nº 5.123/2004 também prevê o procedimento para entrega da arma, cabível uma indenização inclusive:
Art. 67-B. No caso do não-atendimento dos requisitos previstos no art. 12, para a renovação do Certificado de Registro da arma de fogo, o proprietário deverá entregar a arma à Polícia Federal, mediante indenização na forma do art. 68, ou providenciar sua transferência para terceiro, no prazo máximo de sessenta dias, aplicando-se, ao interessado na aquisição, as disposições do art. 4o da Lei no 10.826, de 2003.
(Incluído pelo Decreto nº 6.715, de 2008).
Parágrafo único. A inobservância do disposto no caput implicará a apreensão da arma de fogo pela Polícia Federal ou órgão público por esta credenciado, aplicando-se ao proprietário as sanções penais cabíveis.
(Incluído pelo Decreto nº 6.715, de 2008).
Portanto, evidente que ninguém é obrigado a receber herança, quanto mais por convicção pessoal ou por falta de aptidão não desejar ser proprietário de arma de fogo, sendo a Lei bem clara quanto à transferência ou devolução do armamento.
NOTA DE REDAÇÃO: Cícero Mouteira é Assessor Jurídico da PMMG, advogado, professor universitário e de cursos preparatórios e, por trabalhar diariamente em ambiente militar, respeita e entende a utilidade e necessidade do artefato, porém exclusivamente em mãos ordeiras e bem treinadas.
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