Centenário de nascimento de José Eugênio Dutra Câmara

27/08/1919 – 27/08/2019

por José Eugênio Dutra Câmara Filho

 

Pois então meu pai? 100 anos do seu nascimento hein?  Há quase nove anos você nos deixou, saindo da curta viagem da vida e embarcando na estação da eternidade, quando tinha 91 anos.

Quando partiu, nos confortava saber que pode depois de tantos anos reencontrar seu pai, Eloy Ângelo, que o deixou quando tinha apenas 11 anos. Reencontrou nossa querida Vó Margarida, sua mãe e ídola de todos os seus descendentes. Diga a ela que sua doçura, sua fineza, sua calma, seus exemplos nos iluminam por aqui. Você encontrou também seus irmãos que partiram antes de você, nossos queridos Tios Ângelo e Luiz Álvaro. Imagino como foram divertidos tantos casos para colocar em dia, revivendo os maravilhosos e divertidos encontros de família na casa da Vó Margarida.

Mas a dor da sua perda era atenuada quando lembrávamos que você pode encontrar novamente aqueles que jamais poderiam ter ido antes de você: Seus filhos. Marco Antonio que se foi tão jovem, aos 18 anos; Luiz Ângelo, que se foi aos 36; Margarida que embarcou para esta estação aí de cima aos 35; e Sérgio Henrique, aos 41. E também seu genro Tadeu, que se foi com Margarida, e reencontrou também sua neta mais velha Mariana. Que alegria deve ter sido este reencontro. Isto conforta muito, por isto assim realizo e creio.  

Meu pai, seus mais de 90 anos de vida foram bem intensos, né?

Você ficou órfão aos 11 anos, mas ter tido uma mãe como a Vó Margarida é uma dádiva. Sua mãe junto com seu avô Dr. Dutra criou você e seus irmãos com muitos bons exemplos e dignidade. Vó Margarida ficou viúva com pouco mais de 30 anos, e conseguiu formar todos os cinco filhos, algo inimaginável àquela época. Um exemplo para todos nós.

Na sua adolescência, aprendeu a amar os cavalos, tendo como professor o Dr. Paulo da Rocha Lagoa, genro do Bias Fortes. E este amor pelos cavalos você me passou. Por aqui nossa raça Campolina tem melhorado cada vez mais, não tão grande, mas marchando muito, e a sua marcha preferida, a picada, está na moda e fazendo muito sucesso.

Ao optar por fazer odontologia, mesmo sendo filho, neto e bisneto de médico, formou-se muito jovem aos 22 anos, na atual UFMG. Clinicou pouco tempo, mas você devia ser bom nisso, pois outro dia um amigo seu, o Ítalo Bello, disse que ainda tem uma obturação que você fez nele em 1944. Imagina só, já esta durando 75 anos!  

Mas seguiu como dentista no Hospital Colônia (atual Fhemig), até se aposentar em 1986, atendendo aos pacientes psiquiátricos. Lembro que você sempre levou seus filhos no Hospital Colônia, que tinha inúmeros pacientes psiquiátricos, e um dia conversando com você sobre isto você me disse que assim fazia, para que conhecêssemos o sofrimento alheio e também aprendêssemos a não ter preconceito, com quem sempre era vitima disso. Legal isso. Obrigado por este exemplo meu pai.

Você conheceu a mamãe em Belo Horizonte quando estudava odontologia e poucos sabem que conquistou o coração da bela Dora, mesmo esta sendo assediada por um vizinho dela, de nome Fernando Sabino. Desta passagem, quem acabou sendo o “Grande Mentecapto”, hein? Quando descobri isto, entendi por que você sempre falava mal dos livros do Fernando Sabino.

Quando seu sogro, meu avô Antônio faleceu, você e mamãe mudaram-se para Paracatu. Fechou seu consultório aqui em Barbacena e virou fazendeiro por lá. Seus três primeiros filhos nasceram em Paracatu, mas a saudade apertou e você voltou para sua querida Barbacena, onde nasceram os outros cinco filhos.

Além de dentista do Hospital Colônia, optou por ser fazendeiro, com gado leiteiro e cavalos campolina, dupla opção que muitas vezes as contas não fechavam né mesmo. Mas você fez a opção pela felicidade, e isto deve ser imperativo a todos.

Na política, foi lançado candidato a prefeito (1962), pelo Dr. Bias, então ex-governador, e por seu grande amigo Biazinho, vencendo sua primeira eleição.

Depois foi reeleito (1972), sinal que gostaram da sua gestão. E venceu com o maior percentual de votos ate hoje da história da cidade. E ganhou de novo pela 3º vez em 1982, mas desta vez pela legislação eleitoral vigente (sublegenda), o eleito foi o segundo colocado, pois o partido mais votado que fazia o vencedor, e com três candidatos do outro partido, o segundo lugar geral foi o eleito. Absurdo da legislação eleitoral da época. Mas você cumpriu seu papel. E foi o único que disputou três vezes as eleições para prefeito sendo o mais votado em todas elas, mostrando o quanto é admirado. Até hoje, sempre encontramos pessoas que o elogiam como prefeito, e aquele prêmio que você ganhou da ONU pela escola integral, com alimentação e roupas para os alunos carentes, ensino básico pela manhã, profissionalizante à tarde e ainda alfabetização de adultos à noite, mostra como é possível mudar uma sociedade com ações simples e bem elaboradas. Construiu várias escolas, postos de saúde e estradas na zona rural, alem de calçamento e pavimentação de ruas, em detrimento de fazer obras faraônicas que acabam por comprometer o equilíbrio financeiro do município. E toda vez que saía à noite tinha de passar na Praça dos Andradas para ver a fonte luminosa e sonora que você fez, estava funcionando corretamente. Lembra-se? Mas nossa maior satisfação, se compararmos com políticos que vemos por aí no Brasil: você saiu com um patrimônio menor que entrou na Prefeitura, prova da sua honestidade e probidade na vida pública.

Lembro-me meu pai, que nesta eleição que você ganhou, mas a sublegenda elegeu o segundo colocado, como ex-prefeito você foi à posse do eleito, Prof. Lídio Nusca, e este o convidou para a mesa principal, e você foi aplaudido de pé quando se dirigiu ao seu lugar, dando um exemplo de civilidade e respeito, retribuído pelos seus opositores. Adversários, mas amigos respeitosos. Assim eram os políticos de antigamente. Um dos grandes amigos que você teve por aqui foi o ex-prefeito Vicente Araujo, o fato de serem de grupos políticos diferentes, jamais abalou a amizade forte entre vocês e de minha mãe com a D. Guida. Que isto seja exemplo para os políticos de hoje: mais civilidade, tolerância e respeito. Aliás, você e Vicente quando encontram por ai até os anjos devem dar risada dos casos de vocês.

Você sempre adorou futebol. Vibrava com o Vila do Carmo nos anos 60, hein? Mas daí achar que o Mauro Bahia era melhor que o Pelé, é paixão demais, viu?  E ainda nos deixou o legado de torcer pelo nosso Fluminense. Já deve saber que depois de sua partida, o Flu ganhou dois campeonatos brasileiros. No momento nosso Flu… deixa pra lá. E no futebol ainda teve o Lagoa Negra, time que você criou, pois era a única forma de ser titular em algum time. Esta sua “habilidade”, você também nos transmitiu. Ninguém joga nada, incluindo seus netos.

Como pecuarista, você sempre foi um fervoroso defensor desta classe tão sofrida, testemunhada por uma das suas inúmeras célebres e engraçadas frases “A maneira mais feliz de empobrecer é tirar leite”. Na criação de cavalos, seu criatório Lagoa Negra, que é o segundo mais antigo da raça nos dias de hoje, sendo o primeiro o criatório “Gas”, continua em pleno vapor, mas agora a Fazenda Lagoa Negra mudou de lugar. Está a 30km de Barbacena, antes de Ibertioga, numa linda Fazenda, onde procuro que você daí fique orgulhoso. O Pulunga toma conta para mim com muito esmero, assessorado pelo seu neto Paulinho, hoje um renomado consultor em pecuária. A fazenda foi do seu amigo Dr. Fontana, cunhado do seu compadre e grande amigo Zizo Sad. Conte para eles ai.  

Relembrando aqui, como você foi ativo em cargos que ocupou hein?  Além de prefeito por duas vezes de Barbacena, foi do Conselho das estatais Ceralma, Casemg, Banco de Crédito Rural, e foi também presidente de várias entidades: do Sindicato de Produtores Rurais de Barbacena, da Associação Brasileira dos Criadores do Cavalo Campolina, da Associação Odontológica de Barbacena (sendo seu 1º presidente), entre outras. Foi também membro do quadro de árbitros da raça campolina, e é hoje um dos patronos da Academia Brasileira dos Criadores do Campolina. Aliás, para minha satisfação ocupo hoje a cadeira na Academia que tem você como patrono. Ocupou outros cargos e recebeu tantas homenagens que nem vou me alongar.

Mas como pai e esposo foram em minha opinião o que melhor fez na vida. Não tenho palavras para descrever a paixão que tinha por você em vida e continuo a ter após sua partida. Você era meu melhor amigo.  Quando viu que eu gostava de cavalos, sempre me incentivou. Quando as exposições nacionais eram itinerantes (1965 a 1983), organizadas pelo Governo Federal, sempre me levava, sendo a primeira em Curitiba, 1969, quando eu tinha cinco anos. A maioria destas nacionais era em julho, mas teve uma época que passou para novembro, e você me desafiava: “Se você passar de ano, ainda com as notas de setembro, eu te levo”. Claro que eu aceitava e cumpria o objetivo. Lembro-me que aos 12 anos, na véspera para viajarmos para a exposição nacional, de 1976 em São Paulo, tive uma febre alta, e você passou a noite toda sentado ao meu lado, sem dormir, esperando por minha melhora. Meu pai, sempre atendo pacientes, que contam um caso engraçado seu, ou ato de generosidade. Logo depois que você partiu, atendi um paciente, que me disse: “Não vim consultar, estou aqui para dar meus pêsames, e dizer o quanto minha família é grata ao seu pai. E ele mal nos conhecia. Vou lhe contar: Meu pai estava devendo muito, e tinha uma dívida ativa na prefeitura muito grande. Seu pai era o prefeito de então. Chegou a cobrança na minha casa e ele disse à minha mãe. “Vou lá conversar com o prefeito para ver se ele me anistia”. Minha mãe ainda disse ”Você vai ter coragem?” “Vou sim, dizem que ele recebe o povo duas vezes por semana, é só marcar”. Chegando lá meu pai explicou a situação ao seu pai, e ele respondeu: “Olha, anistiar eu não posso, pois a lei não permite, mas vamos fazer o seguinte, ontem saiu o pagamento de salário da prefeitura, e eu recebi o meu também, me dá o valor ai”. Tirou o próprio talão de cheque do bolso, preencheu, chamou um assessor e disse; “Paga lá na tesouraria e dá o recibo aí para o senhor “. Casos como este, meu pai, nos enche de orgulho. Assim você construiu seu carisma, e por isso o maior patrimônio que você aqui deixou foi uma legião de amigos e admiradores. Não tenho dúvida disso. Nunca teve usura e ambição desmedida, e você gostava de repetir uma frase que ouviu na juventude: “O sujeito era tão pobre, mas tão pobre, que a única coisa que ele tinha era dinheiro”. É isto aí.  

Como esposo você foi um exemplo. Quando minha mãe não mais andava, e tinha muito pouco momento de lucidez, você adorava ficar sentado segurando sua mão, e se recusava a sair de casa a noite ou viajar para não ficar longe de minha mãe, mesma tendo ela dedicada cuidadora. E como você sofreu com o sofrimento físico dela. Foram 61 anos de um casamento onde souberam passar pelas agruras da perda de quatro filhos, e juntos se uniram num sofrimento que só quem perdeu filhos pode entender. Mas mesmo assim foram muito felizes juntos. E quis o destino que você não ficasse viúvo como era previsível, e você partiu um ano antes dela, após aquele fatídico infarto.

E após sua partida, em 01 de outubro de 2010, você pode receber na estação da eternidade, após pouco mais de um ano, minha mãe, e juntos puderam rever seus filhos que já se encontravam por aí, num momento de grande emoção penso eu.  E penso assim, pois me conforta. O sofrimento aqui é provisório, pois aí na eternidade todos se reencontram. Logo depois da chegada da minha mãe, vocês juntos receberam mais um filho: Fernando. E ainda chegaram seus outros irmãos, Tios Eloy e Mário Celso. E depois seu neto Marco Antônio, ainda tão jovem.

Como deve ser animada esta mesa de nossa família por aí. Tio Ângelo deve estar sentado na cabeceira da mesa como sempre, e você e seus irmãos contando caso divertido e Luiz Ângelo animando mais ainda, de tão divertido que é.  Vó Margarida rindo de tudo, e mamãe falando baixo para você “Deixa de bobagem Zé Eugênio”.

Ah meu pai, quanta saudade! Palavra de difícil descrição. Quem a melhor definiu foi Pablo Neruda. “Saudade, uma eterna solidão acompanhada”. Estou escrevendo esta mensagem pelos seu 100 anos de nascimento justamente no dia dos pais. Espero que o wi-fi celeste esteja bom e você receba rapidamente. Escolhi este dia para ter esta coragem. Mas por ser o seu dia, a emoção está forte. Lagrimas já caem sobre o teclado. Inevitável.

Meu pai, seus 100 anos serão comemorados ai na eternidade com nossa família e com muitos amigos. Meus irmãos já espalharam através dos anjos, o maravilhoso pai que aqui tiveram, e o céu está pequeno para tanta alegria. Um dia você e mamãe reencontrarão os três que aqui ficaram Raquel, Paulo Eugenio e este seu caçula que vos escreve. E poderemos enfim sentar naquela mesa redonda de 10 lugares com os seus nomes e dos oito filhos escritos na toalha, que após a perda do Marco Antônio, o primeiro que se foi, mamãe nunca mais permitiu usar. A viagem da vida é curta, e no desembarque da estação da eternidade nos reencontraremos todos. E por terminar, inspirado numa frase sua, deixo o que meu coração manda te dizer neste seu centenário. “Meu pai, tão grande quanta a saudade que sinto de você, é a gloria de ter sido seu filho. Deus te abençoe até o fim de todos os tempos!”

José Eugênio Dutra Câmara Filho (Dudu)

Barbacena, agosto de 2019.

Nós usamos cookies e outras tecnologias semelhantes para melhorar a sua experiência em nossos serviços, personalizar publicidade e recomendar conteúdo de seu interesse. Ao utilizar nossos serviços, você concorda com tal monitoramento. Aceitar Saiba Mais