Cego, surdo e mudo

A crônica de Francisco Santana

Encontrei-me hoje com o amigo Brandão, notadamente um exímio criador e contador de histórias mirabolantes, inacreditáveis, fantásticas e atraentes. Lembro-me de quando ele foi jogar futebol numa localidade próxima a Barbacena, onde os habitantes eram apaixonados por futebol. Todo domingo após a missa, o campo de jogo era o ponto de encontro da população regional. Participei de vários eventos e sei como era. Num desses lá estava o Brandão jogando pela equipe local e no time adversário jogava o Leão, seu leal amigo. Ambos combinaram simular uma discussão, empurras, palavrões e uma briga. Eles queriam ver o que aconteceria. Após o término do primeiro tempo do jogo, ambos colocaram em prática o malfadado plano. Foi um pandemônio, pancadaria para todos os lados, palavrões eram jogados pelos ares, todos brigaram, inclusive os torcedores que invadiram o campo sem saber o porquê de tanta confusão. Depois da batalha campal veio a calmaria e os amigos Bandão e Leão retornaram a Barbacena rindo dos acontecimentos.

A mente do Brandão não parava de funcionar. Lá pelos idos anos 70 ele e mais dois amigos resolveram visitar uma cidade do interior de São Paulo. Durante a viagem arquitetaram uma brincadeira. Não tenho dúvidas de que ela foi mais uma obra da mente criativa do Brandão. Só não sei se ele plagiou de algum filme ou a extraiu de algum livro. Foi algo espantoso, surreal e absurdo. Nenhum deles tinha talento para artes cênicas, cínicas sim. O poder de criação e convencimento do Brandão era indiscutível. A história mirabolante era a seguinte: os três amigos perambulariam pela cidade durante 12 horas, um passando-se por mudo, o outro cego e o outro surdo. Brandão seria o surdo. O mais falante da tríade representou o mudo, para sentir na pele o quanto é saudável a arte da escutatória e, sobrou para o Juvenal representar o cego, ele que era extremamente minucioso e observador.

E assim saíram pelas ruas. A população os acolheu com dedicação, espanto, compaixão e jamais os trataram com desrespeito. Falhas aconteceram? Claro que sim! Num bar pediram três cafés. O mudo disse que o café estava muito frio e foi advertido pelo surdo, que lhe disse: “Cale a boca! Você se esqueceu que mudo não fala!”. E o mudo respondeu: “E desde quando surdo escuta?”. Na saída do bar o cego fez um elogio à garçonete chamando-a de gostosa.  Surdo e mudo riram porque cego não enxerga. O show maior se deu quando os três tiveram que atravessar uma rua movimentada no centro da cidade. O cego se apoiava no ombro do mudo e o mudo dava as mãos ao surdo. O sinal se abriu e lá foram os três. O cego andava bem devagar quase parando. Sinal verde! No meio do trânsito ainda estavam os três personagens. Num ato de solidariedade nenhum carro se movimentou deixando que os três atravessassem a movimentada rua pacificamente. Quando estavam do outro lado da rua, o mudo agradeceu dizendo “Obrigado!”. O cego fez um sinal de positivo em agradecimento. O surdo chamou suas atenções e recebeu com resposta: “Eles jamais saberão que sou mudo”. “Eles jamais saberão sou cego”. Riram das travessuras, dos apertos e foram descansar sob as frondosas árvores da praça.  

A encenação estava prevista para durar 12 horas, mas o cansaço e a falta de ensaios fizeram com que ela durasse apenas seis horas. Todos estavam felizes com o resultado. Em momento algum se falou em interpretação, mas da dificuldade de ser cego, surdo e mudo. A emoção tomou conta do trio. Nenhum esperava perfeição, tanto que por várias vezes o mudo falou, o surdo ouviu e o cego enxergou. Eles enalteceram a solidariedade da população embora, uns poucos os desprezassem. Em cada íntimo houve uma desculpa pela brincadeira e por terem ludibriado a população daquela pacata e acolhedora cidade. Houve um momento de reflexão onde fizeram da discrição um convívio harmonioso com a sociedade.

Brandão me relatou que o ato mexeu muito como o âmago de cada um. “  Visitamos o nosso interior, nos purificamos e encontramos o nosso Eu oculto, que na verdade é a essência da alma humana. Nós nos tornamos cidadãos melhores, mais justos e perfeitos. Nós passamos a enxergar melhor os problemas atinentes às deficiências físicas onde as autoridades políticas e administrativas pouco fazem para auxiliá-los. Eles travam uma luta para subir em um ônibus, subir calçadas, fazer compras e até para se locomover. Tudo isso e mais o preconceito, desrespeito e acessibilidade. É como se eles fossem rejeitados pela sociedade, não importando o tipo de deficiência. As calçadas inadequadas se transformam em passagem para cadeirantes. Pelo que vivemos, mesmo que fosse uma encenação, passamos a valorizar mais o amor, família, amigos, filhos, netos, por do sol, noites de lua, estrelas, crianças, tato, gosto, olfato, audição, visão, saúde, flores, lagos, nuvens e a vida. Percebemos que devemos ver com atenção para conhecer a realidade e não a aparência. Que ouvir é distinguir entre o bem e o mal e que calar é a capacidade de guardar segredo, se for necessário. Tudo isso tendo Jesus Cristo como inspiração”.

“Deficiente” é aquele que não consegue modificar sua vida, aceitando as imposições de outras pessoas ou da sociedade em que vive, sem ter consciência de que é dono do seu destino.

“Louco” é quem não procura ser feliz”.

“Cego” é aquele que não vê seu próximo morrer de frio, de fome, de miséria.

“Surdo” é aquele que não tem tempo de ouvir um desabafo de um amigo, ou o apelo de um irmão.

“Mudo” é aquele que não consegue falar o que sente e se esconde por trás da máscara da hipocrisia.

“Paralítico” é quem não consegue andar na direção daqueles que precisam de sua ajuda.

“Diabético” é quem não consegue ser doce.

“Anão” é quem não sabe deixar o amor crescer.

E “Miserável” somos todos que não conseguimos falar com Deus”

(Mário Quintana)

Visitamos o nosso interior, nos purificamos  e encontramos o nosso Eu oculto, que na verdade é a essência da alma humana. Nós nos tornamos cidadãos melhores, mais justos e perfeitos.

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