Brinquedo assassino

A crônica de Francisco Santana

Não fui uma criança rebelde nem desmancha prazer, mas detestava perder. A derrota me irritava. Pela grande vontade de ganhar, eu sempre perdia. Coisas do destino! Nossas brincadeiras eram tranquilas, sem perigo e quando ele aparecia era por exibicionismo. Eu era mestre nessa arte. Na terra úmida eu jogava finco com o meu irmão Zeca, habilidoso e de ótima pontaria. No fundinho, eu sentia inveja dele. Como eu não podia me confrontar com sua genialidade eu lhe disse: “Zeca, você é incapaz de jogar o finco entre meus dedos”. Ledo engano, eu jamais deveria ter dito isso. Colegas formaram a plateia para assistir o desafio. Começou a brincadeira. Abri bem os dedos e ele mirou. A dor que senti ao ver o afiado prego penetrar no meu dedão me fez molhar a calça e urrar de dor. Corri para casa manquitolando para refugiar nos braços de minha mãe. Ela me acolheu no colo, viu o prego cravado no meu dedão, pegou uma garrafa com álcool e arnica e pediu-me que tapasse os olhos com as mãos. Mal tinha erguido as mãos, ela puxou o finco e jogou na ferida aberta o milagroso remédio. Gritei de dor, mas sobrevivi e aprendi a lição. Nada de esnobação. 

Eram muitas as brincadeiras e difícil de escolher a mais prazerosa. Eu adorava jogar bolinha de gude e tinha incontáveis peças selecionadas pelo tamanho, cor e as mais exóticas. Pulei muita corda e me lembro do famoso grito: sal, pimenta e fogo. Sempre preferi o sal ao fogo. No pique, tinha preferência pelo de esconder, altinho ou bandeira. Preenchi muitos álbuns de figurinhas de variados temas, troquei revistas infantis e de ações. Gostava de jogar botão, bater tatu, jogar futebol na rua onde sempre um ou mais terminavam sem unhas nos dedos. Rodei arco e pneu. Adorava fazer bolinhas de sabão onde disputávamos quem fazia a maior de todas. Um colega inovou, encheu a boca de fumaça e fez uma bola enorme toda turva, quando ela estourou, lançou no ar a fumaça. Ele foi ovacionado. Tinha uma brincadeira que eu nunca tive coragem de praticar, descer ladeira sobre carrinho de rolimã. Adorava assistir, praticar não, puro medo. O carrinho descia as ladeiras do Alto da Fábrica com muita velocidade, os freios eram os gritos do condutor e um pedaço de pau colocado debaixo das rodas. A frenagem era tão forte que ao parar o carrinho girava 360 graus. Uma vez meu pai, João Pedro, chegou à nossa casa trazendo um brinquedo diferente e considerado chique na época. Era o famoso “João Teimoso” com as cores azuis e brancas. A gente dava soco, pontapé, vassourada e ele retornava ao mesmo lugar com aquele olhar cínico e sorriso de escárnio. Ele me irritou tanto, mas tanto, que um dia lhe bati com uma agulha de tricô. Ele continuou sorrindo e eu chorei de tanto apanhar. 

A mídia tem repercutido muito sobre um tipo de brincadeira que se transformou numa arma de mutilar e matar. Eu me refiro às pipas, papagaio, raia ou pandorga que surgiram na China antiga, a cerca de 3.000 anos atrás, nessa ocasião com intuito militar, utilizado como sinalizador. Soltei muitas no terreiro de minha casa. “Na rua não!” dizia minha mãe temendo o atropelamento por um carro ou ser pego pela rede elétrica. Atualmente, elas têm a finalidade recreativa e ornamental e são utilizadas como brincadeira apreciada por crianças e adultos. Nos meses de férias escolares, a prática de empiná-las se torna mais frequente. É uma brincadeira de confronto com o objetivo de cortar e derrubar a pipa do outro. Para isso, muitos utilizam o cerol ou cortante, colocado nas linhas das pipas. Cerol é uma mistura feita de cola de madeira com vidro moído ou limalha de ferro. 

O cerol ganhou um famigerado aliado que atende pelo nome de linha chilena. Ela é feita industrialmente, poder de corte altíssimo onde se acrescenta à linha original, pó de quartzo e óxido de alumínio. Ela é comercializada e facilmente encontrada em mercadinhos. Um alerta que se faz para quem pedala ou pilota é a utilização de equipamentos de segurança como o uso de viseira abaixada, do protetor no pescoço e, principalmente, da antena antilinha. O risco de morte é notório. “Nas pernas temos a veia safena e a artéria femoral, se cortadas, elas podem expulsar muito sangue. O mesmo acontece com o pescoço, por onde passam a carótida e a jugular. Se cortadas, ocorre perda muito grande de sangue em poucos minutos. Outro risco para motociclistas é que ao se chocar com a linha, estando em alta velocidade, ela fica presa na região do pescoço e, com o atrito, causa cortes ainda mais profundos”, descreve o tenente Herman Ameno, do Corpo de Bombeiros.

Empinar pipa é uma brincadeira saudável. Ela nos remete à nossa infância trazendo alegres recordações. De forma alguma não podemos e não devemos transformar essa brincadeira inocente em um brinquedo assassino. Precisamos nos conscientizar, falar dos ricos e convencer a todos que a vida é nosso maior patrimônio.

(Fontes: Site Jusbrasil/Cláudio Suzuki e Hans Robert Braga/Advogados/Jornal O Tempo, agosto/19/Internet).

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