Você conhece a lenda da serpente da Torre da Boa Morte?

Muitos barbacenenses não conhecem, de fato, todos os pontos da história de Barbacena. Mais que isso! Muitas lendas ficaram perdidas no tempo e uma delas envolve uma serpente que vivia em uma das torres da igreja da Boa Morte. A história é tão interessante que despertou a curiosidade do apresentador do Tô Indo, Mário Freitas, que esteve em Barbacena para contar essa história que “muita gente fala, mas pouca gente viu”.  A inspiração veio de um artigo escrito por Edson Brandão. O programa será veiculado no sábado (19), às 11h45 na TV Integração e no domingo (20), após a missa na Globo Minas.

Bastidores da gravação feita em janeiro

A SERPENTE DA TORRE DA BOA MORTE, UMA LENDA PERDIDA NO TEMPO

Por Edson Brandão*
A irmandade de Nossa Senhora da Boa Morte de Barbacena, que na época era o Arraial da Igreja Nova, foi fundada em 28 de setembro de 1754, e antecede em muito a construção da Igreja da Boa Morte.
Naqueles tempos eram as irmandades de leigos que organizavam as principais festas católicas e obtinham recursos para a construção de ermidas, capelas ou grandes templos. Para atuarem dependiam de autorização do monarca português e no caso da Boa Morte de Barbacena, foi a Rainha D. Maria I quem concedeu provisão régia para o funcionamento da irmandade, em 18 de janeiro de 1788. Um ano antes da Revolução Francesa!
A ideia de construir uma capela própria para a Boa Morte surgiu em 1790. Três anos depois escolheram o lugar denominado Boa vista, no final da rua que se ligava ao caminho para a Vila de São José (atual Rua José Bonifácio). Um antigo caminho para a localidade do Faria e depois até Tiradentes e São João Del-Rei. A pequena capela de madeira e taipa que antecedeu a grande igreja da Boa Morte começou a ser erguida no dia 27 de dezembro de 1793. Em 25 de março de 1799, a capela provisória da Boa Morte foi entregue ao culto.
Para obter dinheiro para a construção da Igreja definitiva, a irmandade da Boa Morte mantinha uma equipe de esmoleiros, ou ermitães, homens mais idosos que se dispunham a viver exclusivamente de pedir esmolas pelas estradas e fazendas de Minas Gerais e até de outras províncias, para o custeio dos projetos da irmandade. Andavam a pé ou a cavalo por distâncias longas, sempre vestidos com seus hábitos azuis, amarrados na cintura por cordas, cobertos com chapéu de abas longas e um bastão, tal qual peregrinos medievais. No pescoço traziam um pequeno oratório-caixa com pequenas imagens e um compartimento para receberem as moedas ou outras doações. Quando retornavam para Barbacena ficavam na “Chácara dos Ermitães”, localizada atrás da igreja, local que hoje é o cemitério da Boa Morte. O último ermitão foi o negro Correinha, ou Antônio Correa de Carvalho, que pediu esmolas para a igreja até 1860.
A MINA, AS TORRES E OS SINOS
O templo tal como conhecemos hoje, chamado Assunção, começou a ser erguido em 1816 e as obras duraram até o início do século XX, mesmo com a igreja já entregue ao culto. Muitas lendas sempre circularam entre os antigos barbacenenses sobre a Boa Morte, antes mesmo de sua construção. Uma delas diz que dois fazendeiros disputavam na região que hoje corresponde à Boa Morte, os limites de suas fazendas. Acreditavam ambos, que entre elas haveria um rico veio de prata. Para que nenhuma das partes cedesse, decidiram permitir que no local construíssem uma igreja – a Boa Morte. Mesmo assim, contam que aventureiros tentaram cavar um túnel que atingiria o meio do terreno onde está o templo e sob o qual repousaria a mina de prata. Temendo abalarem as estruturas da Boa Morte, autoridades teriam lacrado o misterioso túnel impedindo a busca pelo tesouro que segue esquecido.
Apocalipse, segundo o pintor Paulo Mattos, retratando a Igreja da Boa Morte em chamas e a serpente saindo da sua torre. Foto: Reprodução.

 

Da capela provisória, demolida em 1850, só restou um sino comprado em 1801, e fundido na cidade mineira de Piranga. Este sino ainda está na torre direita. Aliás, as imponentes torres foram concluídas em 1833, após uma das três longas paralisações das obras da Boa Morte, em cem anos de esforços para a conclusão do edifício. O segundo sino, de 40 arrobas (aproximadamente meia tonelada) destinado à torre esquerda, foi comprado em 1852. Mas, logo depois de instalado, trincou e não mais soou. Assim, a torre da Boa Morte ficou abandonada até a metade do século XX. Em duas ocasiões, raios provenientes de tempestades atingiram as torres causando danos ao templo. Tais sortilégios e maus agouros certamente despertaram a imaginação popular, o que pode ter dado origem a história da lendária serpente.

Se sabemos tanto da história da Igreja Boa Morte, pelos registros lançados nos livros da Irmandade da Boa Morte, sobre a tal serpente, o relato mais elaborado foi escrito pelo Monsenhor Mário Quintão, que foi pároco da Boa Morte nos anos de 1950-60. No livro “Notas Históricas”, de 1967, ele escreve: “A serpente prodigiosa morava dentro da torre e a notícia lendária deste fato causava pavor especialmente aos meninos e aos adultos menos avisados. Era um animal de tamanho assustador. Era tão grande que sua cauda se estendia até a base da torre ou além. De cor preta, aparecia nas noites escuras nas janelas da torre e tinha uma fosforescência pelo corpo todo, projetando luz mortiça para fora, causando admiração aos transeuntes noturnos. Soltava assobio estridente, na solidão da noite. Então, a fosforescência acendia mais intensamente e iluminava de algum modo o interior da torre. Algumas vezes saindo da torre, descia até as proximidades do Grogotó, onde existia uma grande represa, para banhar-se nas águas da mesma. É uma história graciosa. Nunca tentaram eliminar a lendária serpente porque os que podiam fazê-lo sabiam que ela não existia. Existia sim, uma quantidade enorme de corujas e morcegos dentro da torre, dando trabalho aos zeladores da Igreja.” ( QUINTÃO, 1967).
Para além do relato do Padre Quintão, podemos também intuir que a formação das Irmandades e templos dedicados à Boa Morte no Brasil vêm de tradições antigas e muitas vezes se confundem com narrativas estranhas aos cânones da Igreja Católica Romana, permitindo até que fatos imaginários convivessem com a realidade.
Sabemos que a devoção à Nossa Senhora da Boa Morte chegou aos cristãos do Ocidente, através da tradição oriental, sob o título de “Dormição da Assunta”. A Senhora da Boa Morte é um dos títulos dados à mãe de Jesus Cristo. Tradicionalmente os católicos evitam dizer que Maria morreu, substituindo a morte por “dormição”, ou o sono eterno. Desde o século XIV, em Portugal, existe o culto a Nossa Senhora da Boa Morte em uma capela localizada em Lombo do Atouguia, Ilha da Madeira.
Na Bahia, a irmandade de Nossa Senhora da Boa Morte é uma das mais antigas do Brasil e hoje é considerada patrimônio histórico imaterial.
Ao contrário do que ocorria em Minas Gerais, e seus velhos ermitães, a irmandade baiana sempre foi composta exclusivamente por mulheres acima de 40 anos, na sua maior parte, adeptas do candomblé. No forte sincretismo que ocorre em Cachoeira, no Recôncavo baiano, onde são realizadas as maiores celebrações organizadas anualmente pela irmandade, a Senhora da Boa Morte evoca as fronteiras entre a vida e a morte. Dentro da predominante cosmogonia africana, essa imagística representa o ciclo da vida e está associada ao orixá Oxumaré, que curiosamente é representado na forma de uma serpente vinda do arco-íris, multicor e brilhante, tal como a nossa serpente barbacenense. Na simbologia da irmandade das mulheres baianas, o cajado, o mesmo usado pelos antigos esmoleiros nos seus caminhos mineiros é outro símbolo importante, remetente ao poder do espírito sobre a matéria.
Enquanto na Bíblia Moisés lança ao chão seu cajado, que se transforma em uma serpente, Obatalá bate com seu bastão no solo, dividindo o mundo entre terra e céu, vida e morte. Tantas associações simbólicas de tradições tão diversas podem ter ou não uma conexão ancestral, mas nos dão a certeza de que devem ser conhecidas e preservadas, pois explicam a vida e mundo com um olhar que não existe mais.
*Edson Brandão é membro efetivo da Academia Barbacenense de Letras, cadeira 32 e correspondente do Instituto Histórico e Geográfico de São João Del Rei.
ILUSTRAÇÕES:
Apocalipse, segundo o pintor Paulo Mattos, retratando a Igreja da Boa Morte em chamas e a serpente saindo da sua torre.
Foto: Reprodução.
Os castiçais do altar-mor da Igreja da Boa Morte de Barbacena ostentam estranhas serpentes como as apresentadas pelo artista baiano Caribé, em uma representação de Oxumaré.
Fotos: Delliane Coutinho e Reproduções.

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