Reviravoltas na cuca de uma moça crédula

A crônica de Ricardo Tollendal

Sempre que a memória molestava Ana Clementina, os tipos populares de sua terra vinham à tona: cinco ou seis criaturas que perambulavam. Alguns discerniam a necessidade do ganha-pão. Uma italiana corpulenta, que era pau-pra-toda-obra, nunca soube o que era sussurrar. Entre os homens, havia o gigantesco vendedor de caquis e o negro parrudo que apregoava miúdos bovinos, ambos munidos de seu balaio. Um corcunda, armado de foice, arrastava fardos para o estábulo. Eram os loucos da província, inofensivos até serem achincalhados pelo deboche.

 

Já moçoila, Ana Clementina dividiu o mundo entre eles e nós: dois universos inconfundíveis. A negra, velha e descalça, que apedrejava ou brandia uma revista puída, integrava a desmerecida facção dos insanos. Nos anos de colégio, Ana teve conhecimento das grandes carnificinas da história, mas criou uma categoria à parte para essa gente: eram déspotas cruéis. Afinal, tiveram capacidade de se articular para distribuir bordoada. Não pertenciam à mesma estirpe do matusquela encurvado, que arrastava rua afora um baita nariz arroxeado, murmurando puta-que-pariu para os que dele zombavam.

 

Num dia mais que belo, Ana Clementina sofreu má surpresa. Seu primo Benedito, sempre exuberante, havia estilhaçado vidraças por conta de uma paixão irresistível. Uma moça prendada o havia esnobado. Ana testemunhara, nos bailaricos de sábado, os amuos de Benedito, encafuado e de olhos turvos.

 

A partir de então, Benedito permaneceu largado em casa, e de sua boca escorria uma saliva gosmenta. Ana Clementina o visitava diariamente e tentava reanimá-lo. No dia em que não mais o encontrou, lhe disseram que Benedito tinha ido para a longínqua fazenda dos avós, a fim de beber leite no curral, ajudar na ordenha e recuperar suas cores. Ela nunca mais o viu.

 

Ao fim de seis meses, o pai de Benedito, à custa de embriaguez, havia dilapidado seu patrimônio. Ana Clementina prestou concurso e foi trabalhar na sede da comarca. Suas convicções andavam periclitantes. Ela tentava refazer a hierarquia mental da espécie humana, no momento em que foi vítima de pérfida chantagem sexual, protagonizada por seu chefe imediato.

 

Que era aquilo? Uma noite trocada por regalias. Ela mesma não bancava a louca por desperdiçar a oportunidade? Ana Clementina já não se entendia. Sua insanidade residia na fraqueza da boa-fé? O noticiário aferroava sua inteligência com a noção de que os sensatos eram subjugados pelos velhacos. A lucidez se esvaía, e isso a fez sonhar com um país subterrâneo, onde a maioria andava com os pés no teto, sentindo-se pouco à vontade, embora outros julgassem tudo muito natural.

 

Quando despertou, Ana Clementina se entregou a inúteis saudades do gigantesco vendedor de caquis que, depondo o balaio ao pé de um monumento granítico, enchia os pulmões e declamava versos nefelibatas durante uma tarde inteira.

 

Moral da história: “Divertimo-nos com os doidos, na hipótese de que não o somos”. (Marquês de Maricá)