Milton Gonçalves e a estigmatização do negro

Por Francisco Fernandes Ladeira 

 

Na última segunda-feira (30/5), faleceu, aos 88 anos, o ator, cantor, dublador, dramaturgo e produtor Milton Gonçalves, em consequência de problemas de saúde que enfrentava desde que teve um AVC, dois anos atrás. Na imprensa, foram lembrados os principais papéis teatrais, televisivos e cinematográficos do veterano ator e sua militância contra o preconceito racial e pelo reconhecimento dos negros. No entanto, o que passou desapercebido (propositalmente ou não) nos grandes veículos de comunicação foi o fato de Milton Gonçalves, ao longo de seis décadas e meia de carreira, ser um exemplo único de ator que interpretou papéis que vão além dos estereótipos historicamente relacionados à população de cor no Brasil (como o negro malandro e a mulata sensual). 

Em 1975, na telenovela “Pecado Capital”, no papel do renomado psiquiatra Percival Garcia, Milton Gonçalves foi o primeiro negro a aparecer de terno e gravata numa produção do gênero. Seis anos depois, em “Baila Comigo”, o ator fez par romântico com a atriz branca Beatriz Lyra. Na época, em virtude do casal inter-racial, Beatriz chegou a ser hostilizada nas ruas e sofreu críticas da própria equipe da telenovela.

Além do psiquiatra mencionado no parágrafo anterior, Milton Gonçalves deu vida a outros personagens que fugiam dos estigmas destinados aos negros na televisão, como o Professor Leão, em “Vila Sésamo”, o promotor público Lourival Prata em “Roque Santeiro” e o advogado Apolinário Santana em “Mandala”. Contudo, mesmo fazendo parte do primeiro elenco de atores da Rede Globo (contratado antes de a emissora entrar no ar, em 1965) e ser internacionalmente reconhecido por seu trabalho, Milton Gonçalves jamais foi protagonista de uma telenovela (e não foi por falta de oportunidade, haja vista que trabalhou em mais de quarenta). 

É inegável que, nas últimas décadas, tem aumentado a presença dos negros na mídia (apesar de ainda estar muito distante de refletir a diversidade étnico-racial existente em nosso país). Porém, como afirmou o próprio Milton Gonçalves, em depoimento para o seminal documentário “A Negação do Brasil”, não se trata, simplesmente, de inclusão do negro, mas sim atrair um novo segmento para o mercado consumidor. Ou seja, essa tal “representatividade”, tão propagada em discursos midiáticos e acadêmicos, possui mais interesses mercadológicos do que qualquer outro motivo. 

Evidentemente, a televisão não inventou o racismo (o que nos remete aos quase quatro séculos de escravidão). No entanto, é igualmente inegável que, ao reverberar estereótipos e criar parâmetros de identificação subjetiva (aos quais o público poderá se identificar, sejam eles negativos ou positivos), as telenovelas, de uma forma ou de outra, contribuíram significativamente para que a lógica racista continue norteando as relações sociais no Brasil. 

NOTA DA REDAÇÃO – Francisco Fernandes Ladeira é doutorando em Geografia pela Unicamp. Autor de doze livros. E-mail: ffernandesladeira@yahoo.com.br 

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