Lava a roupa todo dia

A crônica de Francisco Santana

Lava roupa todo dia, que agonia / Na quebrada da soleira, que chovia / Até sonhar de madrugada, uma moça sem mancada / Uma mulher não deve vacilar…” (Juventude Transviada – Luiz Melodia). 

Hoje a saudade acordou me batendo forte. Sonhos e ela me transportaram para a bucólica localidade do Rio das Mortes, pedaço do céu que Deus brindou seus quase quatro mil habitantes. A distância para se chegar lá é a mesma para todos: dos corações amados às almas. Estar lá desperta em nosso âmago uma euforia insofismável. Quando lá estive, constatei os usos e costumes daquele povo festeiro, religioso, apaixonado pela terra, expansivo, feliz, humilde e fraterno que eu aprendi a amar com meus pais, irmãos e parentes que lá nasceram.    

A lavagem de roupas nos rios e córregos era um hábito admirável. Ainda de madrugada, mulheres caminhavam em direção a eles, equilibrando bacias cheias de roupas na cabeça. Esse gesto gerava um apreciável bailado sem música. Algumas, além das roupas, levavam às mãos vasilhas para trazerem água. Perguntei à minha tia: Cadê os homens? Ela me disse: “Neste momento estão na estrada rumo a São João Del Rei para trabalhos ou nas lavouras para plantar, adubar, cuidar e colher”. Participei algumas vezes desse ritual interessante e alegre na companhia de tias e primas. Não me esqueço dos alertas: “Cuidado por onde anda! Esse rio é traiçoeiro, tem muitas partes fundas!”. Cada uma se ajeitava próxima a grandes pedras lapidadas onde as roupas eram batidas, esfregadas, enxaguadas e depois colocadas para secar sobre as areias das prainhas e arbustos. Durante o cerimonial, algumas cantavam e outras gargalhavam, contavam casos, falavam sobre as festas e missas. Povo religioso. O processo da lavagem não era uma agonia e sim, alegria. Durante a secagem, as trouxas de roupas eram substituídas pelas latas de água. Ao vê-las caminhar com as latas de água nas cabeças pareciam se equilibrar sobre o fio de uma navalha. O andar era faceiro, gingado sexy e alegria no olhar. Esse era o retrato que eu registrava. 

O sabão utilizado era de bola ou sabão preto, confeccionado pelos moradores do local. O produto artesanal era recomendado pela eficácia. Além do uso próprio ele era comercializado em São João Del Rei nas feiras livres, por encomenda e com grande aceitação popular. Eu admirava sua feitura e cheguei a colocar a mão na massa. Depois de colocar os ingredientes num tacho, minha tia foi ao canteiro, pegou dois ramos grandes de arruda e os colocou atrás das orelhas. Curioso como sempre, perguntei a ela o porquê daquele gesto e da oração rezada baixinha. Ela me disse que era para espantar o mau olhado, olho gordo e quebranto. O resultado final era a feitura de sabões primorosos, de qualidades excepcionais.

Era comum encontrar com essas mulheres guerreiras, levando feixes de lenhas nas cabeças para uso diário nos fogões à lenha. Eu me deparei várias vezes com fogueiras no terreiro de casas e sobre o fogo, grandes tachos cheios de roupas claras, manchadas e roupas íntimas. A água fervia e as roupas eram remexidas com pedaços de pau. Depois da água esfriar, as roupas eram esfregadas, enxaguadas, torcidas e penduradas em varais ou em cercas enfeitadas com buchas vegetais.  

À tardinha, elas retornavam aos locais para buscarem as roupas limpinhas para serem passadas. O instrumento utilizado para o alisamento era o tradicional ferro a carvão de passar roupas, que era aquecido pelas brasas extraídas dos fogões e colocadas dentro de uma caixa na parte superior do ferro. A tampa da caixa tinha uma alça que permitia às pessoas segurarem o ferro quente enquanto passavam as roupas, alisando e desamarrotando-as. Muitas gerações participaram desse aprendizado e eu tive o prazer de testemunhar.  

Sabão de bola, saponáceo de altíssima qualidade, produto em extinção, ferro a carvão de passar roupas se transformou em peça de museu.  Ambos fazem parte da minha história que repasso para meus filhos e meus filhos repassarão para meus netos e assim ninguém esquece. 

(Fontes: Texto Sabão de bola escrito por José Antônio de Ávila Sacramento/Site Tradições Populares das Vertentes de Ulisses Passarelli). 

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