Imagine outra história

Por Juliana Rettore, psicóloga, mãe e pesquisadora, orientanda do Laboratório de Escrita Criativa e Científica da Casa da Ciência e da Cultura de Barbacena, sob orientação do professor Delton Mendes Francelino, coordenador do Centro de Estudos em Ecologia Urbana do IF Campus Barbacena, Diretor do Instituto Curupira e coordenador da Casa da Ciência e da Cultura de Barbacena.

Quando pensamos em pré-história logo imaginamos os homens das cavernas, fortes, movidos por instintos agressivos, que lhes garantia coragem para caçar bisões e mamutes. Já as mulheres, as imaginamos como seres frágeis, que estavam constantemente grávidas, o que as impedia de caçar; ou que ficavam apenas “por conta” de cuidar das crianças, do preparo da comida, dentre outros clichês tradicionalmente presentes em filmes e até desenhos animados bem populares, como os Flintstones. Não lhes restava outra opção, segundo este imaginário, além de ficarem na caverna e esperarem, passivamente, os caçadores proverem.

Esse pensamento tem sido perpetuado desde o “nascimento” da pré-história, com base em pressupostos filosóficos e religiosos muito fortes. Depois, quando a Ciência, nos séculos XVI, XVII e XVIII, começou a despontar, sempre com homens, em sua maioria brancos e ricos, na Europa, as mulheres não eram consideradas pessoas intelectuais e, seguindo pressupostos sociais e religiosos,  “serviam” apenas para casar, tomar conta do lar e procriar. Assim como todos os contextos da esfera social europeia, a Ciência, como também a Filosofia e campos do senso comum diversos, era praticada por homens, e muitos desses, amparados por preceitos religiosos de vertente Cristã (decorrente desde o Império Romano, anterior à Idade Média) perpetuavam a cultura do homem como detentor do conhecimento ou como aquele que “solucionaria” os problemas da sociedade, do mundo. Indiana Jones, no cinema, quem não lembra?

Até mesmo no século XIX, e depois, no XX, movidos pela Evolução das Espécies de Charles Darwin e Wallace (1859), muitos se interessaram em explicar modelos de sociedade a partir da ideia de que os homens brancos eram superiores às demais etnias e também às mulheres – ideia que ganhou protestos vigorosos de muitas mulheres, que foram silenciadas na guilhotina. Vale destacar que Darwin e nem Wallace nunca fizeram qualquer menção a algo deste tipo e que a evolução das espécies não é a mesma coisa que o Darwinismo social, que é essa “alteração” de pressupostos da Evolução biológica e que propõe que os “mais aptos” à vida na sociedade seriam melhores para esta sociedade. Isto foi perceptível, por exemplo, nos discursos nazistas, já no século XX. É importante discernir sobre este fato, de que a Evolução das Espécies foi “apropriada” por discursos sem qualquer comprovação científica já àquela época, assim como ainda hoje, em que conhecimentos científicos são apropriados por falsas ciências.

Retornando, então: os primeiros pré-historiadores interpretaram que as sociedades pré-históricas prosperaram devido à atividade de caça e pela força e inteligência superior dos homens em criar armas. Porém, não há evidências arqueológicas de que a caça era feita exclusivamente por homens, nem mesmo sequer a caça pode ser entendida como a principal atividade que fez a humanidade se desenvolver e, tampouco, as mulheres podem ser consideradas frágeis e restringidas à sua capacidade de gestar. Sabemos, hoje, que certamente os grupos humanos nômades de milhares de anos atrás certamente eram extremamente coletivistas, algo, inclusive, que fez a humanidade sobreviver ao cataclismo do vulcão Tôba, há 70 mil anos.

Cabe destacar que a caça era uma atividade extremamente trabalhosa, que requeria conhecimento de terreno, trabalho em grupo, estratégia, habilidade e também sorte (achar os animais a serem predados, não sofrer lesões na hora do motim, ou os animais não serem ágeis e fortes o suficiente para fugirem). Muito provavelmente, os seres humanos (somos primatas, vale sempre lembrar) obtinham proteína animal de carcaças abandonadas por outros animais. A atividade que era menos trabalhosa e que, a partir da qual, obtinha-se comida de forma mais rápida e fácil era a coleta e, talvez, a caça de pequenos animais por meio de armadilhas. Convenhamos que estas atividades não exigiam uma suposta força física extraordinária. Além do mais, na pré-história não existiam sistemas de comunicação e dominação em massa, possivelmente cada grupo se organizava de uma forma – em alguns grupos havia divisão sexual do trabalho, outros não; em alguns, talvez, os homens tinham mais prestígio social; noutros, as mulheres, e em outros não haviam hierarquias baseadas em gênero, pois não era uma questão. É possível que várias organizações sociais tenham existido concomitantemente.

Quanto à força, na maioria dos esqueletos encontrados e analisados nos séculos XVIII, XIX e XX, considerava-se o sexo pelo tamanho da pessoa, pela medida da circunferência da pélvis e pelo tipo de lesões encontradas nos ossos, feitas em decorrência das atividades praticadas. Esqueletos compridos de pélvis estreita com lesões formadas possivelmente pelo uso de armas foram considerados masculinos e, os menores, de pélvis larga, femininos. No entanto, estudos recentes analisaram o DNA de alguns esqueletos e muitos deles atribuídos ao sexo feminino eram homens, e, muitos outros, atribuídos ao sexo masculino eram, na verdade, mulheres. Como é o caso de um esqueleto viking, de 1,70 cm, enterrado com várias armas e jogos de estratégia de guerra, atribuído à um chefe guerreiro, mas cujo exame de DNA revelou que na verdade era uma mulher! E não foi apenas esse caso: dezenas de ossadas femininas foram enterradas com mobiliário e enfeites funerários muito ricos, demonstrando que elas possuíam prestígio social.

Tendo em vista esses dados, convido a todos a imaginarem as seguintes situações: as mulheres pré-históricas eram nômades, caminhavam, subiam em árvores,  exercitavam-se o dia todo, usavam armas, tinham músculos como atletas. Não eram frágeis. Mesmo que gestantes, eram capazes de correr (já viram maratonistas grávidas?), coletar e fazer outras atividades. Eram capazes de se defender e defender seus territórios, sua comunidade. Muito provavelmente, se havia divisão sexual do trabalho em que o homem era caçador, as mulheres coletoras – ao carregarem sementes para as cavernas – perceberam que, ao cairem no solo, germinavam. Assim puderam desenvolver a agricultura, que implicou na sedentarização e desenvolvimento de cidades. Se as mulheres permaneciam nas cavernas, cuidando das crias, muito provavelmente foram elas que desenvolveram a linguagem para transmitir cultura. Se as mulheres desenvolveram a agricultura enquanto os homens caçavam, muito provavelmente desenvolveram ferramentas agrícolas – enxadas, arados, cestos. Com o excedente de comida produzido pelas agricultoras, foi possível domesticar animais. Se não havia divisão sexual do trabalho, então homens e mulheres caçaram, coletaram, desenvolveram armas e tecnologias.

O que não é possível imaginar é que mulheres não participaram ativamente do desenvolvimento da humanidade; e hoje, século XXI, após tantos milênios e séculos de domínio dos homens na produção e discussão do conhecimento, as mulheres estão começando a ocupar proeminentemente estes espaços, como na Ciência, na Filosofia e outros campos do saber. Isso é de suma importância para uma sociedade que repense a si mesma e os pressupostos morais e éticos, advindos de religiosidades fortes, que eram e ainda são segregadoras e estão presentes no cotidiano sob a figura do tradicional “bom e ruim”, “certo e errado”, “mulher pode isso, homem pode aquilo”. Todas podemos e devemos ocupar espaços quaisquer e isso é fundamental para uma Ciência, Filosofia, Senso Comum e religiosidades menos opressoras e mais acolhedoras.

Referência:

Pathou-Mathis,M. O homem pré-histórico também é mulher: a história da invisibilidade.

Apoio Divulgação Científica: Samara Autopeças e Jornal Barbacena Online

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