História de Nossa Terra IV: A fantástica versão do resgate de Tiradentes

Os republicanos de 1889 criaram um mito e teorias espetaculares da vida de Joaquim José da Silva Xavier permanecem na ordem do dia.

Por Silvério Ribeiro

 

O curioso com disponibilidade e paciência para realizar uma pesquisa, principalmente na internet, acerca de Tiradentes e da Inconfidência Mineira, vai constatar que o afã revisionista de nossa História está em seu ápice, contestando verdades até então pétreas, esmiuçando a historiografia em torno de famosas figuras nacionais. O trabalho de revisão, não o condeno aqui, sequer na Academia, necessário que é para eliminar exageros produzidos pelo passado. Entretanto, o critério de se escorar em fatos e dados não pode ser esquecido, com risco dos mitos transformaram-se em monstros.

 

O texto do jornalista Guilhobel Aurélio Camargo¹ intitulado “Tiradentes, uma farsa criada por líderes da Inconfidência Mineira”, publicado em 2011, condensou, de modo geral, o que continua sendo revisado e amplamente divulgado acerca da famosa conjuração e da biografia de seu principal líder, o Alferes Joaquim José da Silva Xavier:

 

“Ele estava muito bem vivo, um ano depois, em Paris. O feriado de 21 de abril é fruto de uma história fabricada que criou Tiradentes como bode expiatório, que levaria a culpa pelo movimento da Inconfidência Mineira. Quem morreu no lugar dele foi um ladrão chamado Isidro Gouveia.”

 

A estória, que tem profundas raízes em informações passadas de geração em geração, sem registro histórico, conta a mentira que forjou o feriado de 21 de abril. Joaquim José da Silva Xavier foi sentenciado à morte e enforcado nesta data no ano de 1792, no Rio de Janeiro, no local chamado Campo da Lampadosa, hoje conhecido como Praça Tiradentes.

A república precisava criar uma nova identidade nacional e pensou-se em eternizar o Marechal Deodoro da Fonseca, o proclamador, mas, figura antipática e sem uma história de vida que despertasse o interesse do povo, não colou. Ademais, o marechal se arrependeu depois de ter proclamado a república. Figuras outras foram avaliadas e por fim, escolhido foi o Tiradentes, nascido em Minas Gerais, estado que tinha à época a maior força política republicana do país, importante polo comercial. Os críticos do registro histórico ainda vigente afirmam que jogaram ao povo a imagem de um Tiradentes parecida com a de Cristo e era o que bastava, ou seja, um Cristo da Multidão, um Mártir! Querem uma figura mais popular que a de um mártir? Transformaram-no em herói nacional, com imagem e estória construídas sob a égide da injustiça, conforme vários autores, agradou tanto a elite quanto o povo.

 

Joaquim José da Silva Xavier nasceu em 1746, na Fazenda do Pombal, entre São José e São João Del Rei, definitivamente um são-joanense.  Filho de um pequeno fazendeiro, ficou órfão de mãe aos nove anos e perdeu o pai aos onze. Não chegou a concluir o curso primário e foi morar com seu padrinho, Sebastião Ferreira Dantas, um cirurgião que lhe deu ensinamentos de Medicina e Odontologia. Ainda jovem, ficou conhecido pela habilidade com que arrancava os dentes estragados das pessoas. Daí veio o apelido, o tira-dentes. Em 1780, tornou-se um soldado e, um ano à frente, foi promovido a alferes.

Nesta mesma época, envolveu-se na conjuração mineira, movimento que se organizava contra a execução da Derrama, convertido depois numa pretensa revolução a favor da independência da capitania das Minas Gerais. Como era um simples alferes, apontam os críticos, não lideraria brigadeiros, padres e desembargadores, os verdadeiros líderes do movimento. O alferes, provavelmente, nunca esteve plenamente a par de todos os planos e os reais objetivos dos boatos que falavam em evitar a Derrama. Tiradentes, semianalfabeto, afirmam outros estudiosos, foi apenas um idealista, apaixonado por revoluções, inspirado principalmente pela independência das colônias norte-americanas.

Textos críticos, como o apresentado por Guilhobel Camargo, apontam para a possibilidade dos movimentos libertários ocorridos no Brasil, durante os séculos XVIII e XIX, contarem com o dedo da maçonaria. Tiradentes, afirmam outros, sem nenhuma comprovação documental, seria maçom. O alferes, indicado como pessoa longe de acompanhar os maçons envolvidos na conjuração, pois esses eram cultos, e em sua grande parte, estudantes que haviam regressado da cidade de Coimbra, em Portugal, em sua ânsia de liderar, teria na verdade, atropelado os verdadeiros artífices do movimento mineiro.

 

Os críticos gostam de lembrar que Tiradentes era um dos poucos inconfidentes que não tinha família, apenas uma filha ilegítima e traçava planos para casar-se com a sobrinha de um padre chamado Rolim, por motivos econômicos. Ele era, então, de todo o grupo, aquele considerado uma codorna no chão, o mais frágil dos conjurados, sem vínculos familiares sólidos, o de menor preparo cultural e possuidor de poucos amigos, sem dinheiro, querendo abocanhar as riquezas do padre. Portanto, a melhor escolha para desempenhar o papel de bode expiatório, aquele que livraria da morte os verdadeiros chefes da inconfidência.

 

No dia 15 de março de 1789, Joaquim Silvério dos Reis delata o movimento que se desenvolvia nas Minas Gerais ao governador, o Visconde de Barbacena, relatando que havia um ardil sendo preparado para matá-lo e o poder da capitania cair nas mãos de revoltosos. O delator contou o que se processava, com o único viso de conseguir o perdão de suas dívidas.

 

O Visconde abortou a execução da Derrama e ordenou a prisão dos conjurados. O Tiradentes foi preso no Rio de Janeiro e o julgamento dos inconfidentes prolongou-se por dois anos. Durante todo o processo, o alferes admitiu ser o líder do movimento, frente aos demais, em sua maioria, que negavam participação direta nos eventos.

 

Os revisionistas apontam também para uma promessa a qual Tiradentes se fiara de que livrariam a sua cabeça na hipótese de uma condenação por pena de morte. Daí a explicação de sua voluntariosa confissão. E, a estória toma outro rumo no mar de hipóteses trazidas de geração em geração, afirmando-se que em 21 de abril de 1792, antes de deixar a prisão rumo à forca, com a ajuda de companheiros da maçonaria, foi trocado por um condenado, o carpinteiro Isidro Gouveia. O celerado em questão, havia sido condenado à morte em 1790 e assumiu a identidade de Tiradentes, em troca de ajuda financeira que seria dada à sua pobre família. Gouveia, com a cabeça raspada, conduzido ao cadafalso, testemunhado por alguns presentes que conheciam o Tiradentes, estes teriam ficado surpresos com a figura de um homem que não podiam reconhecer como sendo a do alferes mineiro. ²

As afirmações tentam se basear num livro, datado de 1811, de autoria de Hipólito José da Costa³, este sim, comprovadamente maçom. A obra em questão, intitulada:  Narrativa da Perseguição, documenta a diferença física de Tiradentes com aquele que foi executado em 21 de abril de 1792.

Afirmativas apontam também para o que teria registrado o escritor Martim Francisco Ribeiro de Andrada III, em seu livro intitulado Contribuindo, de 1921, onde afirmara: “Ninguém, por ocasião do suplício, lhe viu o rosto, e até hoje se discute se ele era feio ou bonito…”.

A narrativa da dúvida prossegue dando conta de que o corpo do ladrão Gouveia foi esquartejado e os pedaços espalhados pelas estradas até Vila Rica, cidade onde o movimento se desenvolveu. A cabeça não foi encontrada, uma vez que sumiram com ela para não ser descoberta a farsa, apesar da afirmação histórica que ficou exposta numa estaca em praça pública, justamente em Vila Rica, atual Ouro Preto

A indicação da descoberta do resgate de Tiradentes, que alguns pesquisadores chamam de farsa, foi base para o texto do controverso Guilhobel. A fonte da pesquisa recai sobre o historiador carioca Marcos Correa, quem tentou provar que este enredo é real, com base em uma pesquisa que realizou em Lisboa no ano de 1969. Ali, viu fotocópias de uma lista de presença da galeria da Assembleia Nacional francesa de 1793. Correa pesquisava sobre José Bonifácio de Andrada e Silva e acabou encontrando a assinatura que era o objeto de suas pesquisas e próxima à assinatura de José Bonifácio, também aparecia a de um certo Antônio Xavier da Silva. Correa era funcionário do Banco do Brasil, se formara em grafotécnica e, por um acaso do destino, havia estudado muito a assinatura de Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes. Concluiu que as semelhanças eram impressionantes.

A nova versão da história tenta indicar que Tiradentes teria embarcado incógnito, com a ajuda de irmãos maçons, na nau Golfinho, em agosto de 1792, com destino a Lisboa. Junto com Tiradentes seguiu sua namorada, conhecida como Perpétua Mineira e os filhos do ladrão morto Isidro Gouveia. E, noutra fonte, em uma carta que foi encontrada na Torre do Tombo, em Lisboa, existe a narrativa de outro autor, o Desembargador Simão Sardinha, na qual diz ter-se encontrado na Rua do Ouro, em dezembro no ano de 1792, com alguém muito parecido com Tiradentes, a quem conhecera antes no Brasil, e que ao reconhecê-lo saiu correndo. Ainda relatos, quatorze anos depois, em 1806, de que Tiradentes teria voltado ao Brasil, aberto uma botica na casa da namorada Perpétua Mineira, na Rua dos Latoeiros (hoje, Gonçalves Dias) no Rio de Janeiro, onde morreu em 1818.

 

Verdade? Mentira? Fantasia?

O certo é que os mitos possuem força para encobrir os fatos.

O nosso desafio como pesquisadores está além da incessante busca da verdade histórica. O pesquisador que se preza tem que trabalhar com base em documentações, provas, dados e, principalmente, possuindo um profundo respeito pelas personalidades históricas. A questão não é recontar a inconfidência. O objetivo tem que ser o de confirmar os reais acontecimentos da conjuração mineira e resgatar o Alferes Joaquim José da Silva Xavier, o verdadeiro tira-dentes.

 

NOTA DA REDAÇÃO: Silvério Ribeiro é Pesquisador e Escritor.

 

Fontes:

1 – Guilhobel Aurélio Camargo (Curitiba7 de julho de 1947) é um jornalista, intitulado na rede social de  rábula em direito e enxadrista brasileiro, autor de várias ações populares contra governantes brasileiros. Texto publicado originalmente em 2011.

2 – Texto: Morte de Tiradentes tem contestação. Inconfidência Mineira. Para historiador, ladrão teria assumido identidade em troca de dinheiro. Folha de São Paulo, 21 de abril de 1999.

3 – Hipólito José da Costa Pereira Furtado de Mendonça (Colônia do Sacramento, 1774 – Londres, 1823) foi um jornalista, maçom e diplomata brasileiro, patrono da Cadeira 17 da Academia Brasileira de Letras.

 

Imagem: Tiradentes na forca – caracterização da EPTV.

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