Abandono de lar: um grande mito no Direito de Família

Por Cícero Mouteira

Mitos e lendas são fabulosos em filmes e na própria história da humanidade. Particularmente sempre fui fã da Mitologia Greco-romana muito antes de qualquer joguinho do God of War. Porém mitos e lendas no âmbito jurídico trazem desinformação e muitas vezes inibem que o cidadão exerça um direito ou ainda que se prendam a uma determinada situação sem necessidade alguma.

Não é a primeira que escrevo ou que me manifesto sobre minha simpatia ao DIREITO ENCONTRADO NA RUA. Situações e dúvidas do cotidiano, quase sempre por leigos e algumas vezes por acadêmicos, surgem indagações e boatos tidos como certos em puras inverdades ou até de algo que realmente encontra amparo no ordenamento jurídico, contudo monstruosamente distorcido em uma espécie de crendice popular do Direito.

São exemplos dos mitos jurídico: a LEI DO SILÊNCIO que veda som alto após as 22:00h e antes das 06:00h; o PERCENTUAL DE 30% estabelecido em lei a título de pensão alimentícia para os filhos menores e; o tema central deste artigo: O ABANDONO DE LAR.

Então eis que um aluno me relata que uma conhecida sua não deseja mais o convívio conjugal, porém teme sair de casa e assim perder todos seus direitos, sejam eles patrimoniais ou até mesmo sobre os filhos comuns ao casal.

Como diria um famoso padre espanhol já falecido: “Isso non ecziste!”

De todo modo, vou tentar ilustrar a origem do mito ABANDONO DE LAR que volta e meia ainda gera dúvidas. Então vamos lá:

Atualmente a vida civil é regida pelo Código Civil Brasileiro de 2002. Entretanto, antes de seu advento éramos regidos pelo Código Civil de 1916, além de outras leis, como a Lei do Desquite de 1942 (que autorizava a separação, porém não permitia o divórcio) e o Estatuo da Mulher casada de 1962. Aliás o CC 1916 era tão machista e patriarcal que após atingir a capacidade plena com a maioridade, a mulher voltava a ser relativamente incapaz quando do casamento, passando a ser assistida pelo marido!

E é nesse contexto historicamente superado que o ABANDONO DE LAR ficou famoso.

O Art. 234 do jurássico Código Civil de 1916 trazia em seu art. 234 a previsão de uma das consequências em desfavor da esposa que deixava a residência comum do núcleo familiar: “A obrigação de sustentar a mulher cessa, para o marido, quando ela abandona sem justo motivo a habitação conjugal, e a esta recusa voltar.”

No século passado, deixar de ser sustentada pelo marido poderia representar ser lançada à miséria, fora o rótulo pejorativo de desquitada que torcia narizes em uma sociedade hipocritamente conservadora.

E não parava por aí! Tinha mais:

O finado Art. 317 do CC 1916 (vigente até 1977) também previa o abandono do lar (por dois anos contínuos) como causa autorizativa para o pedido de desquite. Já o Art. 395 da Lei 3.071/1916 punia com a perda do pátrio poder (hoje chamado de Poder Familiar) sobre os filhos em desfavor do pai ou da mãe que o deixasse em situação de abandono. Sobre este último dispositivo é distinta a forma de abandono no sentido de negligenciar os cuidados e criação do filho. Todavia, não era raro o entendimento de que caso a mulher deixasse o lar conjugal, não levando consigo os filhos menores, estaria consequentemente negligenciando seu papel e deveres de mãe.

Enfim, hoje essas previsões estão revogadas e asseguro que nenhum casamento precisa perdurar, em especial por medo que a mulher tenha em deixar a residência e perder todos os seus direitos!

Para aflorar a questão, pior fica quando imaginamos violência doméstica contra esposa ou companheira (visto que a União Estável ganha cada dia mais equivalência ao casamento civil em regime de comunhão parcial de bens.) Vamos cogitar que por desconhecer o atual Direito de Família e por ouvir na curva do vento o mito do abandono de lar, a mulher não deixe um relacionamento e uma casa tóxica (para dizer aqui o mínimo) por puro receio de ainda ser punida na visão chauvinista ou de preconceito misógino. Não raro tal situação ainda pode ser vista em pleno ano de 2022, mesmo com todo excesso de informações disponíveis na internet.

E claro que aqui as redes sociais são como um machado: servem para cortar lenha e ser útil, mas também servem para arrancar uma cabeça do pescoço!

As fakes news ou boatos propagam inverdades e são publicadas e repassadas transformando mitos em realidade.

E hoje? Pleno século XXI? Não há mais nenhuma forma de abandono de lar?

Na verdade, ainda há um ABANDONO DE LAR no ordenamento vigente!

A Lei nº 12.424/2011 (do programa Minha Casa Minha Vida), inseriu no Código Civil Brasileiro, mas precisamente em seu artigo 1.240-A, o seguinte: 

Aquele que exercer por (2) dois anos ininterruptamente, e sem oposição, posse direta, com exclusividade, sobre imóvel urbano próprio de até (250) duzentos e cinquenta metros quadrados, cuja propriedade divida com ex- cônjuge ou ex- companheiro que abandonou o lar, utilizando- o para sua moradia ou de sua família, adquirir-lhe-á o domínio integral desde que não seja possuidor de outro imóvel urbano e rural.

Assim, conforme melhor entendimento jurisprudencial, o abandono do lar pelo ex-cônjuge deve ser VOLUNTÁRIO e INJUSTIFICADO e o cônjuge que permanecer no imóvel adquirirá o domínio ou a propriedade integral do bem. (Acórdão 1370179, 00024335520178070019, Relator: JOÃO EGMONT, Segunda Turma Cível, data de julgamento: 8/9/2021, publicado no PJe: 17/9/2021.)

Evidente que se uma esposa deixa o lar por ser vítima de agressão física ou psicológica, não há que se falar em saída voluntária! Era uma necessidade sua saída! Outrossim, em caso de traição, por mais que deixar o lar seja uma conduta voluntária, não há que se falar em ausência de justificativa.

Porém, todas essas observações são apenas para impedir que o cônjuge ou companheiro remanescente no imóvel próprio do casal, venha a usucapir (aquisição originária de propriedade) a outra metade que pertence àquele que deixou o lar.

Então, jogando uma pá de cal no tema, asseguro que caso uma mulher queira  extinguir o casamento e sair de casa, por pura vontade que seja, não perderá seus direitos patrimoniais (a meação de todos as coisas adquiridos onerosamente na constância do matrimônio, dependendo do regime de bens), muito menos perderá o Poder Familiar sobre seus filhos!

NOTA DE REDAÇÃO: Cícero Mouteira é advogado, Assessor Jurídico da PMMG, professor universitário e de cursos preparatórios, bem como defensor de que o único motivo para que um casal permaneça sob o mesmo teto seja o afeto existente entre cônjuges e/ou companheiros!

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