“A vida é muito curta para ser pequena”. Uma homenagem a Dona Totoca

Aos poucos Barbacena vai se despedindo de suas figuras lendárias, tradicionais, que ajudaram a escrever a história da cidade. Nesta segunda-feira (21) a cidade perdeu uma de suas foliãs mais animadas: Dona Totoca, aos 103 anos. O Barbacena Online, através de Edson Brandão, homenageia essa figura ilustre que será sempre lembrada com muito carinho.

 

“A vida é muito curta para ser pequena” (Benjamin Disraeli)

Por Edson Brandão

O ano de 1918 não foi um ano qualquer. Em novembro, chegava ao fim o pesadelo da Primeira Guerra Mundial, com o triste saldo de 15 milhões de mortos. No Brasil, o vice-presidente Delfim Moreira assumia o lugar de Rodrigues Alves, gravemente enfermo. Aliás, naquele ano uma pandemia do vírus influenza, chamada “Gripe Espanhola”, também ceifou vidas no Brasil e no mundo, até ser controlada por volta de 1920.

Em 1918, muita gente interessante tomou decisões importantes: um certo paulista chamado José Bento Monteiro Lobato resolveu fundar uma editora, um jovem maestro, Heitor Villa-Lobos, escreveu uma ópera e um comediante de cinema mudo, conhecido como Charles Chaplin, montou seu próprio estúdio em uma pequena e desconhecida vila chamada Hollywood!

Em 18, o Brasil perdeu Olavo Bilac e o mundo perdeu Claude Debussy. É claro que muita gente nasceu naquele ano: Jacó do Bandolim, músico brasileiro, Nelson Mandela, futuro líder político sul-africano, a cantora e diva Ella Fitzgerald, a atriz Rita Hayworth, o ator Kirk Douglas e o até um famoso herói do cinema que encantou milhões de crianças: o cão Rin Tin Tin!

Um ano e tanto foi 1918!

FOTO: Casa Renascença, Amadeu Caetano, março de 1941. Extraída do livro “Um Insígne Cidadão”, de Maria Leite de Castro Coutinho, 1994.

Em Barbacena, uma charmosa cidade mineira com pouco mais de 20.000 habitantes, morava o casal Alfredo e Aurelina de Castro. Pois naquele ano de 1918 eles festejaram a chegada da segunda filha: Maria da Glória. O casal morava próximo à igreja da Boa Morte, mas logo se mudou para uma casa na Rua do Campo. A casa ficava no antigo no Largo Constituinte, hoje Praça Santos Dumont. Antigamente, naquele local havia uma Igrejinha consagrada a São Francisco de Paula. Dada a sua simplicidade e pobreza arquitetônica, bem que poderia ser uma capela de São Francisco de Assis. De tão pobrezinha, a capela ruiu e no mesmo lugar surgiu um posto de gasolina e muito depois a praça que existe até hoje, com sua Torre Eiffel de cimento e aquele indecifrável pássaro de metal.

Pelas cercanias da pracinha, a pequena Maria logo ficou conhecida como “Totoquinha”, apelido que sua tia Maria Rita lhe dera por se parecer muito com uma prima também chamada de Totoca.

A infância da menina corria ligeira como corre a criançada atrás das pipas ou dos piques de pegar. A fantasia vivia embrulhada com a realidade. O amor aos bichos de casa e do mato viravam os brinquedos que nenhuma fábrica dos adultos era capaz de produzir. Cantava com os bem-ti-vis, conversava com flores. A coleção de pedras de todos os tamanhos e formas quase fez o pai pensar que a Totoquinha deveria ir para Ouro Preto virar mineralogista na Escola de Minas. Coisa de mineiro, uai!

Mas ela foi mesmo para escola que a Baronesa Maria Rosa fez para as Orfãs de Barbacena, severamente administrada por Irmãs de Caridade e que também recebia meninas que tinham a felicidade de ter pai e mãe. Peralta e esperta, a Totoquinha não perdia a chance de aprontar das suas, para o desespero da Irmã Margarida, educadora das antigas que por sua vez não deixava de aplicar seus castigos, para ousadias como matar aula dentro da própria sala de aula. Como ela fazia isso? Ficava escondida atrás de um enorme armário, para alegria das colegas e o desespero da professora. Não tinha dúvida. Logo depois vinha o castigo. E com ele os versinhos lidos nos corredores do colégio, entre as gargalhadas da turma, quando a menina retornava da repreenda da diretora:

“Esta irmã Margarida /com cara de boa amiga / faz amarga a minha vida / cada vez que me castiga…”

Terminado o Primário, Totoca já era uma mocinha e a continuação natural de seus estudos foi a Escola Normal Municipal, onde formou-se professora, em 1937. Data desta época seu aprendizado de costura, bordado e datilografia. Habilitações que lhe valeriam muito no futuro. Seu primeiro emprego foi na Escola Remington, sinônimo para máquina de escrever. Se bem que sua bela caligrafia dispensaria qualquer texto escrito nas ruidosas máquinas antigas. Mas além do trabalho, Totoca, como todas as moças de sua idade, sonhava em se casar e ter filhos. Este sonho se realizou a partir do dia 8 de dezembro de 1941, quando casou-se com o viúvo Álvaro Monteiro de Azeredo Coutinho (1894-1968) e desta união nasceram os filhos: Arthur Bernardes, Alfredina, Ana Aurelina, Delliane, e Alvarozinho. Totoca, aliás, nasceu para ser mãe! Sua vocação para educar e cuidar sempre foi visível no amor dedicado aos filhos. Mas Totoca não era mãe só para a prole gerada em seu ventre. Assim, as enteadas, Emília, Ida Azaléia, Cybele e Çãozinha descobriram com o tempo que vida e o destino lhes trariam uma mãe maravilhosa.

Ela nunca foi feminista, pelo menos na forma como interpretamos o termo hoje. Não propunha rebeliões de gênero ou rupturas com as formas de viver do seu tempo, mas ao lado de Álvaro provou durante sua vida inteira, na prática, que homens e mulheres em igualdade de condições e em sintonia de propósitos podem e devem compartilhar tudo: cama, mesa, filhos, trabalho e principalmente, sonhos e ideais.

Mas nem tudo na vida do casal Totoca e Álvaro foi fácil. Após o nascimento do quinto filho biológico, com a pequenina Çãozinha para criar e o marido gravemente enfermo, Totoca teve que arregaçar as mangas e lutar pela sobrevivência de sua família. Como professora ela lecionou no antigo Colégio Crispim. Tempos depois, a Dra. Maria Isar Bias Fortes convidou-a para lecionar a matéria de Artes Domésticas e Industriais, que estava vaga, no Colégio Estadual Professor Soares Ferreira. Entrou, então, para o educandário e mais tarde, fez concurso público para o cargo, tendo sido aprovada em primeiro lugar. Sua presença no colégio que fora no passado o “Gymnasio Mineiro” marcou uma época, tendo sido ela a primeira mulher a assumir a direção substituindo o Dr. Fernando Victor de Lima e Costa. Ainda no Estadual, foi bibliotecária e secretária da escola.

Mas quem pensa que Totoca ficava só na sala de aula e na burocracia escolar se engana. Ela, com seu espírito sempre jovem e inquieto, realizava festividades e concursos que movimentavam o Colégio Estadual e a vida social de Barbacena. Na época em que os concursos de Miss Brasil paravam o País, Totoca organizou o Concurso Rainha dos Estudantes e Rainha dos Esportes de Barbacena, e logo passou a ser um nome sempre lembrado quando uma entidade nova surgia e precisava de gente com atitude. Foi assim que ela se tornou uma das fundadoras e apoiadora de importantes iniciativas como o Núcleo de Intercâmbio Social e Cultural (NICS), o Serviço de Obras Sociais, o SOS, que marcou a paisagem humana de Barbacena com gerações e gerações de pequenos engraxates na praça principal da cidade. Crianças que trabalhavam e estudavam com dignidade. Também foi uma das fundadoras do Serra Clube, uma entidade ligada à Igreja Católica voltada para o apoio à vocação religiosa de jovens.

Ainda ao lado do esposo Álvaro, Totoca ajudou seu marido a realizar dois sonhos que até hoje muito significam para Barbacena: o monumento aos Pracinhas da Segunda Guerra Mundial, projeto que mobilizou a sociedade barbacenense nos anos 40 e tornou-se uma parte importante do patrimônio histórico local, e o Instituto Beneficente Padre Mestre Correia de Almeida, uma importante obra social que até hoje acolhe crianças carentes, oferecendo-lhes cuidados, abrigo e educação.

A cultura da cidade também deve à Totoca atitudes marcantes.

Ao lado do professor Plínio Tostes de Alvarenga (1908-1993) e de vários intelectuais mineiros, ela foi uma das fundadoras da Academia Barbacenense de Letras, ocupando a cadeira número 7. Durante 20 anos foi dedicada secretária da entidade. Missão natural para quem tem a poesia correndo nas veias, pois além da produção literária ela sempre foi uma declamadora de talento e uma oradora expressiva e cativante.

Sem jamais ocupar um cargo público, Totoca sempre defendeu o patrimônio histórico. Ao revitalizar a bicentenária Irmandade da Boa Morte, ela resgatou não só uma instituição das mais antigas de Minas Gerais, como permitiu que um acervo sacro e arquitetônico de valor inestimável fosse preservado até os dias de hoje. Quando soam os acordes da centenária Corporação Musical Correia de Almeida, é que se sente como esta jovem de 103 anos, cumpridos em abril, foi capaz de sensibilizar cidadãos comuns e grandes autoridades para que uma das bandas de música mineiras mais célebres jamais fosse relegada ao esquecimento e ao silêncio.

Dizem que há pessoas que definitivamente não vieram ao mundo a passeio. Uma delas sem dúvida é Maria Leite de Castro Coutinho. Sua vitalidade transbordante lhe escorria das mãos benfazejas e transferia mais vida para tudo o que ela tocasse ou amasse. Uma criança sábia. Uma senhora menina que brincava com os ponteiros do relógio da vida enganando a velhice que nunca a alcançou espiritualmente, posto que na essência sempre foi uma alma jovem.

O encanto de sua existência não está na cronologia dos fatos ou nos seus incríveis 103 anos de vida, mas sim na intensidade com que estes anos foram vividos. Esta intensidade é que subverte o tempo e torna passado, presente e futuro apenas palavras vazias. Ao conhecer a vida e a história de alguém como Maria Leite de Castro Coutinho nos damos conta de que a vida pode ser breve (mesmo que dure mais do que cem anos), mas nunca pequena, na medida dos nossos atos e convicções.

*Membro efetivo da ABL, cadeira 32 e membro correspondente do Instituto Histórico e Geográfico de São João Del-Rei.

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