A Santa Vai de Carro

Leonardo Lisbôa

O  clima  era  para  ser  festivo,  mas  mesmo  assim  havia  um  quê  fúnebre.  Assim  como  toda  quermesse  típica  daquela  religiosidade.  E  é  esta  religiosidade  que  marca  o  imaginário  citadino  da  municipalidade   desde   o   Império.  O   atavismo   se   fez  pelo  barroco  e  os  templos,  rococó,  denotando  já   a   decadência  do   ouro.

 

O  calendário  civil  seguia  à   risca   o   litúrgico.  O   ano   começava   sim   depois  do  carnaval.  Era  quaresma:  época   da   mula-sem-cabeça,  outrora  moçoilas  que  tentaram  a   concupiscência   dos  capuchinhos  ou   seminaristas,  e  tantas  outras  coisas   do   folclore   e   lendas   da   região.   Vinha   a   “Semana   Santa”   e  o   jubileu   de  S.   José   Operário,   que   começava   em  21   de  abril   trazendo   a   imagem  de  Tiradentes,  o   herói   do   estado   em   retrato  sacrossanto  pintado  pela   República   à   moda  de  Cristo.  Seguia   tantos  outros   feriados   santos   que   fazia  o   povo   e   o   estudante   indolente.

 

Estas   festas   eram   marcadas  pelo   frio   e   as   matracas,  matriarcas  e   maritacas   da   vida     alheia   nas   procissões   festivas    fúnebres   cheirando  a   incensos   fedorentos.   Um   pouco  de  alegria   era   visto  só  por   ocasião  das   festas   natalinas   e   no   maior   feriado   do   município:   o   dia   de  sua  padroeira.

 

E   por   mais  festivo   estas   festas   comemorativas   fossem,   além   do   cheiro   do   incenso,   trazia   o   odor   fúnebre   de   velas   derretendo   a   luz   melancólica   de   seu   fogo.

 

Era   a   pedagogia   religiosa   do   medo   lembrando   o   medievalismo.

 

Naquele   distante   ano   de   1981   foi   o   último   que   se   presenciou    seguindo    este   ritual   do   quinze   de   setembro   regido  por   este   clima   ameaçador.   A   década  de   80   traria   todo   um   questionamento   mudando   costumes   e   hábitos.   A   cidade   foi   tomada   pelos   evangélicos,   coreanos,   e   toda   sorte   de   mudança   que   alteraria   a   estrutura   e   superestrutura   da   coletividade.   O   fim   da   Guerra  Fria   levou   o   pós-moderno   à   antiga   Província   “Mui   Nobre  e  Leal”.   Ela   não   foi   tão   mais    fiel   assim   ao  Império  e   aos   seus   Padres   responsáveis   pelo   conservadorismo.   Até   o   Tiradentes   republicano  perdeu  a   barba   nos   brasões   de   sua   polícia:   agora   é   retratado   como   um   rapaz   imberbe   e   não   como   mais   um   hippie   revolucionário.

 

E   a   Santa   Padroeira   não   vai   mais   sendo   arrastada   no   andor   levada   nas   costas   dos   fiéis   ao   som   de   ladainhas   e   lamentos.   Agora   ela   vai   num   utilitário   enfeitado   por   balões  azuis   e   brancos   atravancando  o   trânsito   de   trabalhadores   e   estudantes   que   querem   chegar   aos   seus  destinos.   As   matracas   cederam   lugar   aos   buzinaços   dos   carros.   As   matriarcas   beatas  com   seus   véus   cederam   lugar   às    velhas   senhoras   com   bíblias   nas   mãos.   Só   não   mudou   as   línguas   das    maritacas   que   não   cansam   de   bisbilhotar   a   vida   alheia   através   das    fotos   das    redes   sociais   e   hipócritas   e   falsos   comentários   nas   fotos   que   soa   tão   falso:

– Linda!

 

Leonardo Lisbôa

Barbacena, 14/09/2018

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NOTA DA REDAÇÃO: Leonardo Lisbôa  é professor da rede pública de ensino de Minas Gerais. Fez sua especialização em História na UFJF e seu mestrado em psicopedagogia na Universidade de Havana, Cuba. Publica textos também no sítio www.recantodasletras.com.br onde mantém duas escrivaninhas (Perfis): o primeiro utilizando o próprio nome ‘Leonardo Lisbôa’ e o segundo o de ‘Poesia na Adega’.  Registro no CNPq: http://lattes.cnpq.br/0006521238764228

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