A dignidade da pessoa humana, o Direito Civil e o STF
Supremo Tribunal Federal disponibiliza Constituição Comentada
Embora a maioria dos meus alunos ainda me conheça por mais de dez anos lecionando Direito Civil, a verdade é que pelo mesmo período coincidentemente tenho atuado com maior habitualidade no Direito Público (destaco sete anos em uma Procuradoria Municipal e, no começo no próximo ano [2022], completando meu primeiro quinquênio como Assessor Jurídico da Polícia Militar do Estado de Minas Gerais), sendo recorrente portanto o estudo e o domínio do Direito Administrativo e do Direito Constitucional.
Aliás, o presente artigo demonstrará que é perfeitamente possível conciliar as minhas três grandes áreas de atuação: Civil, Administrativo e Constitucional.
E, uma agradável surpresa nos meus estudos em 2021: eis que me deparo com a “cortesia” do Supremo Tribunal Federal e da Editora Fórum ao disponibilizar acesso gratuito à Constituição Federal comentada como os principais julgados do STF sobre cada caput, parágrafo, inciso e/ou alínea da Lei Maior. Ah! Até o preâmbulo foi comentado! Importante para concursos!
Para estudantes e operadores do Direito, segue o link:
https://www.editoraforum.com.br/wp-content/uploads/2021/05/Constitui%C3%A7%C3%A3o-e-o-Supremo-Vers%C3%A3o-Completa-__-STF-Supremo-Tribunal-Federall.pdf
Sendo assim, os próximos parágrafos serão focados no Art. 1º, III da CRFB 1988 e no Princípio da Dignidade da Pessoa Humana que… ops! Não é um princípio!
Hã?! Mas como assim?!
ATENÇÃO!!! Estudantes e concurseiros: a Dignidade da Pessoa Humana é tecnicamente um FUNDAMENTO da CF e não um princípio. Essa é pegadinha já manjada ensinada pelos melhores professores, faculdades e cursinhos!
Abrindo um parêntese aqui, oportuno destacar que a Constituição Federal é sedimentada em 05 (cinco) FUNDAMENTOS, 04 (quatro) OBJETIVOS e 10 (dez) PRINCÍPIOS! Vide art. 1º ao 4º da Lei Maior.
Claro que não faltam siglas, decorebas e macetes para disparar o gatilho na mente do estudioso e ajudar o cérebro a lembrar do Art. 1º da Constituição: SO-CI-DI-VA-PLU.
SO – a Soberania: prevalece o interesse e a independência da Nação Brasileira em seu ordenamento mór, harmonizando inclusive com tratados e convenções internacionais.
CI – a Cidadania: uma visão mais ampla que o clássico ensinamento da velha doutrina constitucional, ser cidadão vai além da possibilidade de votar e ser votado, mas sim, os direitos políticos e a participação no Estado Democrático encontra pouso neste fundamento.
DI – a Dignidade da Pessoa Humana: como esse é o tema central do artigo, deixo para explicar sua magnitude mais adiante, inclusive trazendo os julgados do STF incidindo em outros ramos do Direito, além do próprio Direito Constitucional.
VA – os Valores Sociais do Trabalho e da Iniciativa Privada: embora a maioria dos estudantes de Direito sonhe com a estabilidade de um concurso público, não tenho dúvidas que é o particular e a iniciativa privada que sustentam o Estado e movem a economia com a geração de trabalho, empregos e muitas fontes de tributação. Assim, a CF reconhece a importância para a sociedade, mais do que empresas, e sim do trabalho em si como fundamento constitucional.
PLU – o Pluralismo Político: muito pertinente em ano eleitoral, a Lei Maior em respeito novamente à democracia fundamenta seu Art. 1º e permite variadas ideologias políticas de direita, esquerda e centro, além de seus “carinhosos” apelidos, os quais não comentarei neste artigo.
Embora particularmente não seja fã dos macetes das letras e siglas por entender que em alguns casos até lembramos de sua sonoridade jocosa ou quase musical, há o perigo de recordar do LIMPE e hipoteticamente esquecer o que significa o “M” ou o “E”, isto para não falar que de acordo com o Art. 2º da Lei 9.784/1999, há outros princípios administrativos além dos expressos no Art. 37, caput da CF.
Porém chega de floreios e “bora” para o foco central do artigo: o FUNDAMENTO da DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA e sua incidência inclusive no Direito Civil.
Na obra (de 1.421 páginas) A CONSTITUIÇÃO E O SUPREMO (Editora Fórum) é o inciso III do Art. 1º que mais coleciona julgados transcritos dos chamados fundamentos constitucionais!
Repetindo a advertência que sobretudo para provas de primeira fase (objetivas ou de múltipla escolha) a dignidade da pessoa humana é fundamento primário, a doutrina e até os julgados vão não raramente chamar de princípio! E este “princípio” tem raiz histórica desde a Revolução Burguesa, passando pela Segunda Guerra Mundial e decorrente Declaração Universal dos Direitos Humanos (ONU-1948) a condição de viver com dignidade não foi ignorada pelo constituinte em 1988, abrilhantando os julgados mais recentes.
Em respeito aos leitores e a tradição junto aos meus alunos enquanto professor de Direito Civil, evidente que não vou transcrever todos os julgados da obra da Editora Fórum, porém somente aqueles pertinentes de alguma forma à matéria civilista.
Que tal casar o fundamento primário constitucional da dignidade com o direito da personalidade que ensino desde o primeiro período para os calouros?
Brinco dizendo que o nome é o primeiro bem cível que ganhamos e neste mesmo entendimento bate o martelo a Suprema Corte em pouquíssimas porém valiosas linhas:
O direito ao nome insere-se no conceito de dignidade da pessoa humana, princípio alçado a fundamento da República Federativa do Brasil (CF, art. 1º, III).
[RE 248.869, voto do rel. min. Maurício Corrêa, j. 7-8-2003, P, DJde 12-3-2004.]
Se, por um lado o reconhecimento de paternidade é imprescritível, o direito personalíssimo de paternidade e filiação não é alheio ao Art. 1º, III da CF e irrevogável é a herança biológica e reflexos:
Direito civil e constitucional. Acão de investigacão de paternidade cumulada com peticão de herança. Filho adulterino. Paternidade não contestada pelo marido. Direito de ter o filho reconhecido, a qualquer tempo, o seu pai biológico. Prevalência do direito fundamental a busca da identidade genética como direito de personalidade.
[AR 1.244 EI, rel. min. Cármen Lúcia, j. 22-9-2016, P, DJEde 30-3-2017.]
E de forma semelhante à inteligência anteriormente copilada:
Autorizar que se viabilize o cancelamento de registro civil por inexistência de filiação, no caso em que o declarante foi o próprio pai, falecido desde 2007, ofende, entre outros princípios, o da dignidade da pessoa humana.
[RE 708.130 AgR, rel. min. Edson Fachin, j. 28-6-2016, 1ª T, DJEde 12-9-2016.]
Após a leitura da jurisprudência, cabe uma reflexão existencial e material: É possível ser plenamente digno sem ao menos ter o nome do pai presente na Certidão de Nascimento?
Em resposta a esse questionamento e ainda falando sobre reconhecimento de paternidade, o STF fala sobre eventual submissão compulsória do suposto pai ao exame de DNA (tão popularizado pelo deboche televiso do “Programa do Ratinho”):
DNA: submissão compulsória ao fornecimento de sangue para a pesquisa do DNA: estado da questão no direito comparado: precedente do STF que libera do constrangimento o réu em ação de investigação de paternidade (HC 71.373) e o dissenso dos votos vencidos: deferimento, não obstante, do habeas corpus na espécie, em que se cuida de situação atípica na qual se pretende –de resto, apenas para obter prova de reforço –submeter ao exame o pai presumido, em processo que tem por objeto a pretensão de terceiro de ver-se declarado opai biológico da criança nascida na constância do casamento do paciente: hipótese na qual, à luz do princípio da proporcionalidade ou da razoabilidade, se impõe evitar a afronta à dignidade pessoal que, nas circunstâncias, a sua participação na perícia substantivaria.
[HC 76.060, rel. min. Sepúlveda Pertence, j. 31-3-1998, 1ª T, DJde 15-5-1998.]
Tema ainda polêmico, avançando para o Direito de Família, o que dizer da união homoafetiva? A vedação ao preconceito e discriminação pela opção e orientação sexual é aliada à valorização do núcleo familiar como forma de dar tratamento digno, independente da natureza física da genitália do casal! Transcrevo assim decisão que é verdadeira aula sobre o tema:
Reconhecimento e qualificação da união homoafetiva como entidade familiar. O STF –apoiando-se em valiosa hermenêutica construtiva e invocando princípios essenciais (como os da dignidade da pessoa humana, da liberdade, da autodeterminação, da igualdade, do pluralismo, da intimidade, da não discriminação e da busca da felicidade) –reconhece assistir, a qualquer pessoa, o direito fundamental à orientação sexual, havendo proclamado, por isso mesmo, a plena legitimidade ético-jurídica da união homoafetiva como entidade familiar, atribuindo-lhe, em consequência, verdadeiro estatuto de cidadania, em ordem a permitir que se extraiam, em favor de parceiros homossexuais, relevantes consequências no plano do direito, notadamente no campo previdenciário, e, também, na esfera das relações sociais e familiares. A extensão, às uniões homoafetivas, do mesmo regime jurídico aplicável à união estável entre pessoas de gênero distinto justifica-se e legitima-se pela direta incidência, dentre outros, dos princípios constitucionais da igualdade, da liberdade, da dignidade, da segurança jurídica e do postulado constitucional implícito que consagra o direito à busca da felicidade, os quais configuram, numa estrita dimensão que privilegia o sentido de inclusão decorrente da própria Constituição da República (art. 1º, III, e art. 3º, IV), fundamentos autônomos e suficientes aptos a conferir suporte legitimador à qualificação das conjugalidades entre pessoas do mesmo sexo como espécie do gênero entidade familiar. (…) O postulado da dignidade da pessoa humana, que representa –considerada a centralidade desse princípio essencial (CF, art. 1º, III) –significativo vetor interpretativo, verdadeiro valor-fonte que conforma e inspira todo o ordenamento constitucional vigente em nosso país, traduz, de modo expressivo, um dos fundamentos em que se assenta, entre nós, a ordem republicana e democrática consagrada pelo sistema de direito constitucional positivo. (…) O princípio constitucional da busca da felicidade, que decorre, por implicitude, do núcleo de que se irradia o postulado da dignidade da pessoa humana, assume papel de extremo relevo no processo de afirmação, gozo e expansão dos direitos fundamentais, qualificando-se, em função de sua própria teleologia, como fator de neutralização de práticas ou de omissões lesivas cuja ocorrência possa comprometer, afetar ou, até mesmo, esterilizar direitos e franquias individuais. Assiste, por isso mesmo, a todos, sem qualquer exclusão, o direito à busca da felicidade, verdadeiro postulado constitucional implícito, que se qualifica como expressão de uma ideia-força que deriva do princípio da essencial dignidade da pessoa humana.[RE 477.554 AgR, rel. min. Celso de Mello, j. 16-8-2011, 2ª T, DJE de 26-8-2011.] Vide ADI 4.277e ADPF 132, rel. min. Ayres Britto, j. 5-5-2011, P, DJE de 14-10-201
Respeitado ao saudosismo da primeira aula que lecionei, nem mesmo contratos e planos de saúde estão alheios ao fundamento da dignidade da pessoa humana para interromper ou suspender tratamento, muito menos incluir novos beneficiários.
Vejamos o inciso III do Art. 1º da Constituição em um julgado que passeia por algo tão materialista, privado e particular quanto um contrato:
Suspensão de inclusão de novos beneficiários. Operadora de plano de saúde. GEAP. Óbice ao ingresso de servidor do poder executivo cedido à Justiça Federal, que, acometido de doença grave, retornou ao órgão de origem para aposentadoria por invalidez. Impossibilidade de interrupção do tratamento da doença iniciado durante período de cessão. Vedação administrativa excepcionada pelas peculiaridades da espécie em exame. Princípio da dignidade da pessoa humana e do direito à saúde. Mandado de segurança concedido.
[MS 33.619, rel. min. Cármen Lúcia, j. 23-8-2016, 2ª T, DJEde 6-9-2016.]
E quem me conhece sabe da minha predileção quanto à responsabilidade civil que não podia “ficar de fora” desse apanhado da visão do STF na aplicação prática da dignidade da pessoa humana.
Nem mesmo a defesa consolidada na manjada RESERVA DO POSSÍVEL afasta a dignidade quando do dever jurídico do Estado afrontado por omissão que ofende o mínimo existencial:
A cláusula da reserva do possível –que não pode ser invocada, pelo Poder Público, com o propósito de fraudar, de frustrar e de inviabilizar a implementação de políticas públicas definidas na própria Constituição –encontra insuperável limitação na garantia constitucional do mínimo existencial, que representa, no contexto de nosso ordenamento positivo, emanação direta do postulado da essencial dignidade da pessoa humana. (…) A noção de “mínimo existencial”, que resulta, por implicitude, de determinados preceitos constitucionais (CF, art. 1º, III, e art.3º, III), compreende um complexo de prerrogativas cuja concretização revela-se capaz de garantir condições adequadas de existência digna, em ordem a assegurar, à pessoa, acesso efetivo ao direito geral de liberdade e, também, a prestações positivas originárias do Estado, viabilizadoras da plena fruição de direitos sociais básicos, tais como o direito à educação, o direito à proteção integral da criança e do adolescente, o direito à saúde, o direito à assistência social, o direito à moradia, o direito à alimentação e o direito à segurança. Declaração Universal dos Direitos da Pessoa Humana, de 1948 (Artigo XXV).
[ARE 639.337 AgR, rel. min. Celso de Mello, j. 23-8-2011, 2ª T, DJE de 15-9-2011.]
Ainda aquebrantando a RESERVA DO POSSÍVEL e fechando com o dever jurídico e predominância da DIGNIDADE mesmo (ou principalmente) no sistema carcerário, o STF aplicado de forma adequada e multidisciplinar o Direito Constitucional (e seu fundamento primário), o Direito Administrativo (responsabilidade estatal) e o Direito Civil (o dano moral):
Considerando que é dever do Estado, imposto pelo sistema normativo, manter em seus presídios os padrões mínimos de humanidade previstos no ordenamento jurídico, é de sua responsabilidade, nos termos do art. 37, § 6º, da Constituição, a obrigação de ressarcir os danos, inclusive morais, comprovadamente causados aos detentos em decorrência da falta ou insuficiência das condições legais de encarceramento. Com essa orientação, o Tribunal (…) deu provimento a recurso extraordinário para restabelecer o juízo condenatório nos termos e limites do acórdão proferido no julgamento da apelação, a qual fixara indenização no valor de dois mil reais a favor de detento. Consoante o acórdão restabelecido, estaria caracterizado o dano moral porque, após laudo de vigilância sanitária no presídio e decorrido lapso temporal, não teriam sido sanados os problemas de superlotação e de falta de condições mínimas de saúde e de higiene do estabelecimento penal. Além disso, não sendo assegurado o mínimo existencial, seria inaplicável a teoria da reserva do possível.[RE 580.252,rel. p/ o ac. min. Gilmar Mendes, j. 16-2-2017, P, Informativo 854, com repercussão geral.]
E sintetizo o conhecimento da DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA com a própria e árdua tarefa do estudante, do bacharel e dos concurseiros ao ter que dominar tantas áreas da Ciência Jurídica para enfrentar uma faculdade, Exame de Ordem ou provas de concursos!
Não se trata de confrontar qual disciplina é mais importante: Penal, Civil, Administrativo ou Constitucional!
Nem mesmo se trata em harmonizar os vários ramos do Direito.
A grande beleza acadêmica no estudo dos julgados do STF está na transformação do abstrato Art. 1º, III da CF em algo concreto! Concedendo assim, com perdão do trocadilho, dignidade à pessoa, e a tornando mais humana!
NOTA DA REDAÇÃO: Cícero Mouteira é advogado, professor universitário e Assessor Jurídico da Polícia Militar do Estado de Minas Gerais, não deixando de ser um eterno estudante e ávido pela busca em ser uma digna pessoa humana!
Comunique ao Portal Barbacena Online equívocos de redação, de informação ou técnicos encontrados nesta página clicando no botão abaixo: